Vermelho. A cor de sangue tingiu as paredes do beco e invadiu a escuridão. Sua rubra luz encharcou os inóspitos vazios e enxotou as dolosas sombras que fugiram com medo. Logo em seguida o Azul; vermelho e azul...
Meu anjo nem se deu conta quando a lataria daquele imenso fusca azul e branco, com uma estrela dourada estampada, estacionou logo a nossa frente. Ele estava distraído demais para ver qualquer coisa para além do saciar de sua fome.
Quando a sua porta rangeu e se abriu, meus olhos colaram, imediatamente, naquele par de coturnos e, o medo me corroeu a alma. Eu reconhecia o seu passageiro! Seu corpo alto e esguio; seu rosto sádico, com a pele bem bronzeada; seus cabelos crespos e curtos, escondidos abaixo da boina de polícia e, obviamente, seu inseparável e amado palito de dente ─ que parecia impregnado no canto de sua boca. ─
"RICHARD!"
Meus olhos se arregalaram e minhas pernas bambearam diante da sua presença.
Ele estava fedendo ainda mais que a última vez em que o vi.
Hoo meu Deus, como ele fedia... Carregava agora, consigo, o cheiro de morte, traição e ódio.
Quando o vi, minha mente paralisou. Escuridão. As lembranças de Priscila e de Mary passaram diante de meus olhos. As noites no celeiro.... O ódio, a dor, a injuria e a traição sorrateira de todos que amava. O abandono desgostoso da minha família; a morte à beira da estrada caminhando ao meu lado...
Aquele era o homem que havia roubado minha vida, que havia quebrado minhas costelas e meus dentes, que tinha destruído a juventude e o brilho de Priscila...
"Richard..."
O que ele queria agora? Roubar também meu salvador?!
Pela primeira vez pude sentir na pele o ódio que o meu anjo viria a ter. Sim, eles mereciam ser odiados. Cegos. Ignóbeis. IDIOTAS! Colocam armas em mãos manchadas de sangue e desgraça, enquanto viram a cara para anjos que caminham sedentos de comida e abrigo!
Aquele homem a nossa frente era o exemplo perfeito disto... Richard.... Para ele seu trabalho não era apenas um oficio, era sua vida! Sua miserável e incansável busca por socar a cara de alguém lhe fazia sentido e justificava sua triste existência. Só assim, (através de seus punhos serrados), é que ele conseguia se sentir livre e vivo e, quem sabe, até mesmo, se enganasse (de alguma maneira) com a ideia de estar fazendo a diferença na vida de alguém.
"Maldito Richard!"
Seu coturno, tão negro e soturno quanto a noite, deslizou para fora do veículo e, tão logo, seu corpo se fez visível, de pé, parado a nossa frente.
Preparei-me para o pior.
"Eu preciso fazer algo! Eu preciso..."
Fiquei em posição de ataque, mas já era tarde. Havia me distraído tanto com minhas lembranças que não notei o enorme vulto passando ao meu lado e, antes que pudesse fazer qualquer coisa, um braço maciço cercou o meu corpo e me prendeu no ar, tirando-me do chão.
Ele tinha um companheiro!
Debati-me o máximo que pude, tentando me soltar.
Nada feito.
Enquanto isso, aquele maldito homem, com seu palito de dente rolando de um canto para o outro da boca, andou mais algumas passadas e foi, só então, notado pelo meu salvador. Sem aviso prévio, cerimonias ou se quer uma provável explicação, sua esticou sua mão em direção do chão e um porrete negro deslizou pelo seu braço. O maldito o segurou forte, como se fosse parte de seu corpo. Meu anjo se encolheu em um canto como um rato, sem entender o que se passava e, visivelmente amedrontado com a cena, começou a choramingar. Seus olhos imploravam por piedade e ele gemia. Foi então que, o tão odiado amante de Mary, com o seu bastão negro, agora apontado para o céu, pronto à lhe bater, cuspiu as palavras com nojo:
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Amor, meu doce amor. Um conto para a morte!
RomanceAs crendices e credos são repassados de geração a geração como um legado moral de culto ao impossível. Suas raízes se desabrocham, crescem e se reproduzem dentro da mente humana, feito fantasmas (que são). Elas se proliferam como inevitáveis frutos...