XVI. Laços unidos.

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Acordei-me naquele dia melancólico como se tivesse levado um choque. Meu corpo deu um salto no ar! Tudo ainda estava confuso quando desci do sofá apressada. Tive de balançar a cabeça inúmeras vezes para ver se dissolvia a estranha tontura. Olhei ao redor a procura de Duck, mas não o encontrei e, neste exato momento, algo estranho me chamou minha atenção. Um imenso monumento negro se projetou a minha frente. Ele estava vestido com um sobretudo que lhe tapava o corpo todo, com uma cartola negra; sapatos bem polidos e um cigarro aceso, que esfumaçava em suas mãos. Seu corpo se aproximou rapidamente. Tentei dar alguns passos para traz, mas me encontrei prensada pelo sofá. Estava, agora, encurralada e, aquele estranho homem se arrastava em minha direção. A cada segundo ele se aproximava mais (se arrastando com uma bengala em suas mãos). Seu cheiro inundou meu nariz, era doce, como o cheiro irritante de alguma flor artificial. Quando, finalmente, ele estava a poucos passos de mim, eu rosnei para ele. Comecei a acuar alto; ainda me restava a esperança de que Duck estivesse por perto e viesse me socorrer. Ele não veio. Aliás, ele nunca mais viria ao meu encontro, nem para me socorrer, nem para me dar adeus!

Meus latidos fizeram aquele estranho parar.

Por baixo da sombra de sua cartola, eu tentava lhe olhar o rosto, mas não conseguia. Foi neste instante que sua mão se ergueu e, em resposta, acuei com todas as minhas forças. Ele temeu, mas prosseguiu, um pouco mais devagar. Com o outro punho, percebi que ele puxou a cartola. Seu rosto finalmente emergiu das sombras. Um homem totalmente careca, com imensas cicatrizes pela cabeça e metade de seu rosto parecia deformado se revelou. Uma imensa mancha se alastrava sobre a sobrancelha direita. Meu coração disparou. Naquele instante tremi de medo. Tive mais receio daquele estranho, do que quando me encontrei com a morte em pessoa. Foi tão somente quando meus olhos se encontraram com os dele que pude reconhece-lo. Sim, aquele olho azul tão misterioso, inquietantes e profundo. Era Charles e, sob o seu olhar eu me rendi. Nenhuma outra pessoa teria aqueles olhos que me traziam medo e, ao mesmo tempo, amor. Por dentre a felicidade e desespero, eu pensava comigo mesmo:

"Meu Deus, o que fizeram com você?"

Charles parecia-se agora como um FrankStein, um.... Um corcunda de um horrendo livro que, um dia, Priscila havia lido para mim. Mas, apesar da minha expressão de horror, ele não hesitou. Em passos rasos, ele se aproximou ainda mais, sempre receoso; mancando e se arrastando. Com dificuldade, Charles se abaixou e estendeu sua mão em minha direção. Incerta, me ergui e me aproximei. Ele me afagou. Não me tomou em seu colo, nem se quer falou alguma coisa, apenas ficamos parados a nos encarar. Ele, com sua mão deslizando por minha orelha; eu, com um olhar aterrorizado perante suas cicatrizes.

Este foi o nosso reencontro. Sem complicações ou indulgencias, mas, ainda assim, perfeito para mim. Não mudaria se quer um segundo daquela tarde.

Depois daquilo, Charles me levou para sua casa. No primeiro instante fiquei horrorizada com o tamanho e a beleza. Tudo parecia grande demais e imensuravelmente luxuoso.

Quando chegamos, seu pai fez cara feia. O velho homem robusto era inflexível, me olhava de canto com um ar de reprovação, mas ele sabia que: apenas por culpa da minha devoção para com Charles é que ele continuava vivo. Por este mesmo motivo, ainda que resistente a ideia, ele acabou por dar o braço a torcer.

Nesta primeira hora os serviçais da casa me deram um banho, comida boa e, Charles me arrumou um lugar para ficar. Não era nada especial, mas era muito melhor que o frio e a solidão da rua.

Euclides (por sua vez) estava tão preocupado com a viagem que faria para a França, no dia seguinte, que acabou se esquecendo rapidamente da minha presença, mas nada disso me importava: Finalmente me sentia completa, tinha de volta o tão esperado "Amor" de Charles, seu carinho e companheirismo.

Ele não havia mudado em nada; fora seu sorriso que parecia torto em sua face...

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Uma longa pausa se atenuou sendo seguido por suspiros incertos. Quando o olhar das duas se cruzaram um clima constrangedor e incerto pairou pelo ar.

Logo em seguida, Janet desvelou seus segredos:

─ Não, eu estou mentindo! .... Me desculpe, mas esta não é a verdade. É que.... Não sei bem o que aconteceu com ele, mas, Charles parecia ter perdido uma parcela de sua felicidade naquele inesquecível e doloroso cair de noite.

A história, finalmente, havia chego no ponto onde a Morte tanto ansiava e, de certa forma, era angustiante ver Janet dando seu melhor para suavizar toda a desgraça que viria a seguir.

─ Sim, ele estava ao meu lado; era ele, sem dúvida: Meu tão amado Charles. Era o anjo que me salvou da morte; que repartiu sua casa comigo; que me deu uma nova chance, mas... ainda assim; lhe faltava algo.... Ele estava mutilado, como fosse um membro de seu corpo que tivesse se perdido. Só que não era fora. Algo havia morrido depois daquele dia no beco.. Mesmo depois de tanto tempo, eu ainda não consigo descrever com as palavras certas o que foi que ele perdeu. Desde o dia em que nos reencontramos embaixo do viaduto... ele me olhava sério, porém, não via mais compaixão em seu semblante. Seu amor por mim parecia ter se dissolvido dentro de seu peito. Ele se encontrava tão distante, frio e, tão recluso. Jamais havia imaginado lhe ver daquela maneira. Estava tão mudado que eu não o reconheceria se esbarrasse com ele no meio da rua. Juro que tentava entender o que estava acontecendo, mas toda a sua dor estava tão profundamente enterrada que era impossível escavá-las. Seus olhos estavam sempre vazios e distantes. Não se via mais misericórdia neles; nem se quer rancor; havia apenas este grande e intrigante mistério.

A Morte sabia que estava quase chegando a hora de intervir, mais uma vez. E, de certa forma, ansiava e temia por isso.

─ Nas primeiras horas foi quase impossível reconhecer esta diferença sutil e, ao mesmo tempo, tão relevante (que a cada dia se agravava ainda mais!). Mas, depois da segunda noite pude ligar os pontos e as coisas começaram a me fazer algum sentido. Algo estava imensamente errado em seu coração e, ele deixava isso transbordar por todo o seu corpo. Seus ombros caídos, sua falta de vontade para tudo. Ainda me lembro do jeito que se sentava de frente a janela, comtemplando o céu. Charles não sorria, tão pouco chorava, seus pensamentos pareciam se perder dentro de uma dimensão caótica e negra. Parecia confortavelmente adormecido dentre uma inercia que lhe arrancava toda e qualquer vontade...

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Amor, meu doce amor. Um conto para a morte!Onde histórias criam vida. Descubra agora