Mais um enfadonho e cansativo dia se anunciava desde o urgir das primeiras horas. Naquela manhã, como era de costume, ele me acordou um pouco antes das seis e, depois de cumprir o nosso "ritual matinal" (de repartir o pão seco do outro dia), nos colocamos na estrada, prontos para cruzar a cidade. O roteiro feito para a última sexta-feira do mês era ir em direção a saída sul. O que nos levaria a uma outra cidade um pouco menor. Lá, os donos de uma grande coletora pagavam quase o dobro do preço por materiais recicláveis. Se fosse como das últimas vezes em que tomamos aquele mesmo rumo seriam, ao menos, nove horas andando. Desta vez, porém, as coisas não saíram como o previsto! Seis horas de caminhada depois, ainda não tínhamos, se quer, trilhado um terço do percurso. Durante esse tempo não tínhamos parado nem um momento para o tão merecido descanso. A estas alturas, nos encontrávamos no meio do centro, no coração da cidade. O grande espaço, com um chafariz no meio, se fazia pequeno diante da vultosa movimentação. Pessoas saiam de todos os lados. Eram comerciantes, pedestres, curiosos e trabalhadores que se apressavam em aproveitar o seu horário de almoço. Pessoas subiam, desciam e se esbarravam, passando pelo grande corredor arborizado que era a Praça de Nossa Senhora das Ilusões, para, em seguida, rumarem aos restaurantes "populares" logo atrás de um grande centro comercial. Mais adiante a nossa visão, as grandes maquinas metálicas engarrafavam as largas ruas, de duas pistas....
Como sempre: A nossa volta um mar de pessoas; todas indiferentes a nossa presença!
Acima de nossas cabeças, o sol ardente do meio dia bradava sua ira milenar. Deveria fazer, ao menos, uns 38 graus. Meu anjo suava sem parar. Era fácil reconhecer o seu cansaço: Ele se encontrava visivelmente fraco e macambuzio, mancava e balançava como um pêndulo, de um lado para o outro, em um caminhar torto, lento e dolorido. Ainda assim, prosseguia, carregando sua carroça que estava cheia ─ até as bordas ─ com o papelão pesado e umedecido por culpa da chuva da última noite.
Por um instante ele me olhou. De imediato reconheci sua expressão: Era um pedido explicito de socorro, um grito ardente de alguém que se encontra completamente exausto. Todas as vezes que ele me encarava daquela maneira meu coração se apertava. No fundo de minhas mais profundas ânsias eu desejava ardentemente render-lhe daquele suplicio. Queria dar-lhe uma trégua; tomar de suas mãos aquelas rédeas e carregar aquela imensa carroça para ele. Mas, tudo que podia fazer era lamentar o seu sofrimento e assisti-lo em sua lenta e gradativa autoflagelação.
Ele se arquejou e, por um instante, pensei que ele desmaiaria. Felizmente, isso não aconteceu. Por fim, rendido ao desgaste e ao calor, ele recostou sua carroça em um canto e entregou-se a um banco duro e frio, feito de concreto. Dormiu ali mesmo, quase que imediatamente. Já estava tão acostumado a ser invisível que não se importava mais com os olhares tortos de reprovação. Ele somente.... Apagou os seus olhos em um movimento profundo e sistemático, como se estivesse em um colchão e, cobriu-se com o que um dia foi uma caixa. Seus gestos eram tão comuns que os realizou do mesmo modo que se cobriria com um cobertor grosso de pelúcia.
Durante seu sono, podia vê-lo tremelicando, apesar do sol escaldante sobre nós, e, do suor que não parava de escorrer de sua testa. Por fim, conclui que seus calafrios repentinos e sua tremedeira deveriam estar associados à noite fria, úmida (devido à chuva) e mal dormida. Provavelmente a gripe havia lhe tomado durante a noite, mas o único remédio que nós tínhamos para afastar o mal-estar, cansaço, dor... era o sono. Assim serravam-se os olhos para não enxergar a vida e os pesadelos de um futuro incerto, que divagava dentre o irreal.
Quando ele finalmente voltou a acordar, já eram quase duas horas da tarde. Seu rosto triste e perdido ainda transpassava suas dores e, o desanimo parecia incrustrado em seus movimentos. Surpreendi-me ao vê-lo tirando forças de onde não havia. Devido ao seu cansaço, desaceleramos ainda mais os passos e caminhamos, lentamente, como se tivéssemos nos arrastando junto ao vento seco e ardente do início da tarde. Quarenta minutos depois, finalmente, nos afastamos de todos e nos encontramos bem longe da toda a movimentação barulhenta. O silencio e a solidão dos bairros me acalmaram um pouco o espirito, mas, foi ali, no meio do nada, que a triste ironia da sua desgraça se iniciou!
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Amor, meu doce amor. Um conto para a morte!
Storie d'amoreAs crendices e credos são repassados de geração a geração como um legado moral de culto ao impossível. Suas raízes se desabrocham, crescem e se reproduzem dentro da mente humana, feito fantasmas (que são). Elas se proliferam como inevitáveis frutos...