XV. Um incomodo inevitável.

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No silêncio da madrugada ─ entre a amarrotada penumbra esvoaçante ─ ele se ergueu; sem palavras; surgindo como uma sombra que tomou o lugar. Levantei com dificuldade meus olhos. Tudo parecia estar dormente: O corpo, a alma, os pensamentos. Parecia ter-se congelado o espírito.

Foi assim que ele me encontrou. Jogada em uma ruela, entregue a profunda dor da insanidade e o frio da noite. Ainda me lembro do seu olhar dentre a densa neblina. O silêncio reinou por um longo tempo. As palavras perderam, de um minuto para o outro, seu significado. Nada poderia expressar o que pensávamos naquele momento. O mais perto de descrevê-lo, seria dizer que: naquele dia ele encontrou algo mais horrendo que a morte, algo do qual a mesma havia dado as costas.

Duck havia me encontrado!

Ele se esgueirou, silenciosamente; uma passada por vez; veio caminhando em minha direção, parecia temer a vida que discorria diante de seus olhos. Ainda assim, aproximou-se com seu semblante tímido; não sabia ao certo o que fazer.

Estaria morta ou viva?

Seu olhar era tão fixo e vazio.

Fitei meu olhar até que Duck estivesse a apenas alguns metros. Seu corpo pequeno era uma mancha negra titubeante, parada a esquina. Sua sombra se alastrou e seu corpo se fez visível. Ele estava apavorado, sua reação estática perante o horrendo quadro era bem típica. Uma perfeita demonstração de um ser patético. Alguém sem coragem de prosseguir. Mas, ele prosseguiu! Não com seu corpo, mas com sua mente. Enquanto me encara ele planejava: Como salvar um estranho? E decidiu...

"Aos estranhos nunca se é conferido o dom da mentira, ao menos não no leito de morte, pois nada nos resta para continuar a fingir compaixão."

Com estas palavras em mente, finalmente teve a coragem de seguir adiante, desta vez muito mais convicto.

O ódio salvaria uma vida; A minha vida!

Quando finalmente ele parou a minha frente, esperei que emergisse de seus lábios a saraivada de falsas esperança que parecia impregnada em seus olhos. Mas, isso não aconteceu. Aliás nenhuma palavra saiu. Do contrário, minha pata é que entrou!

Duck a mordeu com força, logo em seguida a puxou. Gritei de dor, de raiva e medo. Foi quando ele finalmente largou e me olhou. Seu semblante estava estranho, diferente ao de alguns segundos atrás.... Eu não sabia, mas era a modesta e simples felicidade. Afinal, foi naquele momento em que ele pode descobrir, e tão somente, que eu estava viva!

Com um sorriso maroto escondido dentre os lábios ele deu a segunda investida, me arrastando alguns centímetros adiante. Mais uma vez gritei de dor e raiva; só que desta vez era muito mais raiva que dor. Estranhamente, isso pareceu ser um incentivo para que ele continuasse.

No mesmo instante ele fez a terceira investida.

─ Pare com isso seu idiota. ─ Eu gritava, mas ele se fazia calado.

─ O que pensa que está fazendo?

Quando sua quarta investida veio, ele me arrastou por quase um metro, me puxando pela pata traseira. Não pude mais segurar o ódio. Minha mente saiu fora do controle e minha boca tomou vida própria.

─ Deixe-me morrer em paz seu maldito. Suma daqui!

No mesmo instante, enquanto nos encarávamos, o arrependimento me tomou. A verdade estava finalmente exposta à mesa para que todos pudessem contempla-la: Ansiava tanto a morte, que a ideia de ter sido abandonado por ela era impensável.

Engoli meus pensamentos, junto com a saliva e este desceu rasgando até meu coração. Duck ficou estático, pensei que depois daquele desabafo sórdido ele me abandonaria. Foi só uma questão de tempo para descobrir que não seria tão fácil assim me livrar dele.

Amor, meu doce amor. Um conto para a morte!Onde histórias criam vida. Descubra agora