─ Trim... ─ O som do telefone rompeu o silêncio matinal.
Nenhum corpo se moveu. Era domingo, dia de missa e silêncio; manhã ensolarada e fria. Tudo parecia tão ausente e distante. Agora, apenas o som da campainha se ouvia pela manhã.
─ Trim... ─ Soou pela segunda vez. Seu ecoar anunciava em um pressagio melancólico que algo ruim aguardava do outro lado do fone.
Com dificuldade Priscila ergueu-se da cama ao soar do terceiro toque. Tomou cuidado para não acordar a mãe que dormia ao seu lado e, portada de suas pantufas estufadas de lã, arrastou-se, coçando os olhos, passando desapercebida pela sala onde seu mais odiado e repudiável padrasto roncava.
─ Srta. Bultrie? ─ Falou a voz compassada e apaziguadora de Yan, do outro lado da linha. Priscila demorou a responder. Quando finalmente sua voz se fez ouvir, resmungou em uma entonação estridente, algo opaco e sem nexo, arfante de mais para uma jovem de tão pouca idade.
─ Como porta-voz do Sr. Faccino. ─ Prosseguiu o homem do outro lado da linha.
─ Filho do falecido Sr. Euclides Faccino... ─ Tão logo fora interrompido pela voz arrastada da moça que pedia:
─ Por favor, seja direto. São oito horas da manhã de domingo. ─ Diante dele, finalmente, o serviçal se fez soltar:
─ Caso tenha interesse, o meu senhor... Charles Faccino, escreveu em carta, com minha ajuda, descrevendo que gostaria da contratação imediata de seus serviços...
No mesmo instante lhe veio a imagem de Charles com aqueles imensos olhos azuis que sempre pareciam lhe seguir. Eles eram tão profundos, aconchegantes e capazes de destruir a alma por completo. No segundo a seguir lembrou-se também de seu último dia naquela mansão, de onde advinha aquela remota lembrança de ter confrontado seu passado, encarando sua infância, por dentre os olhos cansados de uma pobre cachorra.
Tentou por alguns instantes afastar seus pensamentos e esquecer a vergonha de ter abandonado o serviço aquele dia. O encontro entre as duas havia criado tamanho desconforto e angustia que jurava para si mesma nunca mais voltar lá por conta própria. Por fim conseguiu se concentrar e acompanhar o homem que do outro lado da linha que sem se importar com o silêncio, continuava a falar.
─... O mesmo fez questão de deixar escrito que pede desculpas pelos infortúnios que possa ter causado a senhora e pede em forma de suplica, que seus serviços lhe sejam concedidos, pois ninguém mais lhe parece tão apto e capaz de trazer-lhe de volta os movimentos.
A jovem moça titubeou, passou a língua de um canto ao outro dos lábios, a saliva os ressecou rapidamente trazendo o frio da manhã a sua boca, seus olhos se abriram um pouco mais e um suspiro inundou seu peito tão junto dos pensamentos a lhe invadir a mente. "Preciso de um emprego..." Ela pensou "E o mais rápido possível! Não posso continuar morando com esse inútil nesta casa, preciso sair logo daqui antes que este barco afunde." Seus olhos se voltaram para o sofá, seu padrasto continuava a roncar. Por um instante sua mente se discorreu sobre o cenário a sua volta. A TV ligada baixinha, garrafas de cerveja espalhadas pelo chão, a farda que se encontrava toda amassada perto da estante, e por último, e mais uma vez, seu padrasto que rocava e mordia o palito seco no canto de sua boca. "Mesmo dormindo ele não para de morder esse nojento palito de dente". Ela desejou pelo que imaginou ser a última vez: "Bem que ele podia morrer afogado com aquele palito de dente."
─ O que você me diz, madame? ─ De repente ela pareceu voltar a si.
─ Não estou certa do que lhe dizer... — Por fim ela falou, mas foi interrompida pela voz do outro lado.
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Amor, meu doce amor. Um conto para a morte!
RomanceAs crendices e credos são repassados de geração a geração como um legado moral de culto ao impossível. Suas raízes se desabrocham, crescem e se reproduzem dentro da mente humana, feito fantasmas (que são). Elas se proliferam como inevitáveis frutos...