IX. O velho na contramão.

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O homem de cabelos brancos, parcos, de terno muito bem passado, calças justas no tornozelo, bigode bem aparado (Por sinal, amarelado pelo consumo de excessivo tabaco) E, por fim ─ mas, não menos importante ─, com sua cartola de cano alto; andava e cantarolava, assoviando, por dentre as ruelas. Seu espirito brilhava em um esplendor cintilante. Era, todo ele, pura aura de Felicidade.

Sua vida ia de "vento em proa". Seus negócios haviam lucrado mais do que todos os anos anteriores somados. Além disso, ele finalmente havia tomado coragem para fazer o pedido da mão de sua segunda mulher em casamento.

Agora, lá estávamos nós...

Neste enfadonho e tão certeiro dia, mesmo sem ele saber, eu fui o seu Destino!

Ele caminhava com aquela harmoniosa música em lábios, enquanto, seus passos adentravam os becos e trilhavam as estradas sujas do centro da cidade. Sua bengala girava e ele assoviava alto, sem ter a mínima vergonha. Seus penetrantes agudos adentravam a noite e resvalavam longe, sendo carregados, unicamente, pela voracidade atroz do soporoso ar que inflava seus velhos e tão cansados pulmões. Sua bengala gingava simetricamente ao compasso apressado de seu caminhar e, seu sorriso era estampado como um impresso. Tudo parecia perfeitamente assimétrico em sua postura imponente e, também, em sua vida. Mas.... No fundo do seu peito quase sexagenário ainda restava um penar inquieto. Algo que por vezes retornava à sua mente, como fantasma, para atormenta-lo. Era esta a causa das noites mal dormidas e da pura inquietação cálida de seus últimos anos. Por sorte, suas viagens para Bangladesh e logo em seguida para a Índia (Sempre em busca de especiarias raras para a sua tão extirpada loja) fizeram-no acalentar seus pensamentos. Ao todo, eram tantos os pulsares que haviam lhe espancado o coração que, por fim, cansou-se de condoer com as feridas já tão vencidas. Adormeceu-se o espirito na ânsia da vida e na angustia da espera e, "aquilo", por mais importante que fosse, enterrou-se, bem no fundo da alma.

Ele vinha de uma das casas de café em Purdion. Descia pela rua de Saints Pietro di Burga, despreocupado com a vida, onde se encontrou de frente para o estacionamento transversal da rua Flinger. Parado ali, pela primeira vez, ele pode ouvir os uivos, ao longe, do lamentar triste de um cachorro. O pobre bichano chorava baixinho, gemendo e uivando. Aquilo lhe fez estremecer, mas não foi suficientemente para atormenta-lo, ou, lhe fazer buscar a explicação plausível e razoável ao o que ouvia. No máximo, divagou-se dentre os pensamentos algo condolente e, nada mais.

A sua frente e, a baixa luz, seu belo carro estacionado se fazia visível. Seu "Ford Maverick V8, ano 73" reluzia ao brilho tremulante dos postes. Aquela máquina negra feito a noite era o reflexo perfeito de sua abastada vida. E, depois de algum tempo a contempla-la (com um certo orgulho que lhe atacava o ego), algo lhe chamou a atenção. Ele olhou para o outro lado da rua, amedrontado com aquele sentimento que surgiu em seu peito, mas não viu ninguém.

Eu estava lá, mas ele era incapaz de me enxergar!

Neste instante ele reparou, de maneira totalmente inconsciente, aquele choro lastimável, em forma de uivo, que vibrava junto ao solfejar do vento. Sim, agora ele tinha sua certeza consumada: Aqueles uivares eram, definitivamente, um lamento. Seu tom era tão dolorido que o velho se sentiu tocado e refletiu, por um instante, sobre o que se passava. Concluiu que o bichano pudesse estar machucado. Quem sabe teria sido atropelado, ou ainda, tivesse se perdido de seu dono. Nesse momento uma pontada de pena lhe abateu, mas, pela segunda vez, resolveu ignora-lo; mesmo o uivo parecendo ainda mais próximo; mais alto; mais vivo e mais doloroso que antes. Por fim, distraiu sua mente, diante de seu carro, ao chafurdar autômato de sua mão dentro do bolso em busca do seu molho de chaves e, descontente com a lerdeza que os anos lhe empesteavam, apoiou sua bengala contra a perna. As chaves foram passando, uma a uma, até encontrar a correspondente ao seu veículo.

Foi neste instante em que pude intervir!

Em um momento confuso sua bengala deslizou por suas coxas e despencou. Ela quicou umas duas vezes, fazendo um som metálico e, a curiosidade lhe tomou. Incrédulo do que acabara de ouvir, o velho se abaixou e tomou sua monótona amiga de madeira. Não havia uma explicação para tal som. Ainda, antes de se levantar, um brilho metálico lhe chamou a atenção. Intrigado, teve de forçar seus olhos por alguns segundos para encontrar algo dentre o lodo que se formava nas valetas próximas ao meio fio. Sem pensar muito ele chafurdou seu dedo a remexer; no fundo ele reconheceria de longe aquele reluzir. Foi então que uma moeda de 10 ducados emergiu. Junto dela, um riso torto transbordou em seus lábios. Seria o enésimo só naquela semana. O enésimo e último!

"Horas... Que sorte danada estou tendo. Será que finalmente Deus está me compensando por todos estes anos de trabalho árduo?" Ele pensou, mas quando voltou a erguer sua cabeça, seu sorriso foi imediatamente consumido por seus lábios, que se serraram. Ao longe, pude presenciar seu rosto se transfigurando em uma dor e agonia inesquecível. Sua aparência ficou repentinamente parca, quase fantasmagórica. Seus olhos se arregalaram, sua mão imediatamente começou a tremer, suas pernas amoleceram e seu coração acelerou.

Ele estava diante de mim!

Ainda parado, seus olhos foram ficando cada vez mais vermelhos, cheios de lágrimas, até que uma escorreu por sua face e se encontrou com seu bigode amarelado. Mesmo naquela distância ele pode reconhecer e, no mesmo instante soube que tudo seria diferente em sua vida.

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─ Isso lhe soa familiar?! ─ A Morte perguntou com um ar superior de ironia.

─ Sim, Euclides. Então, você foi a resposta...

─ Sim e não.... ─ A Morte interrompeu. ─ É difícil explicar, mas fui eu que o fiz parar. Se não fosse por mim ele passaria reto, nem se daria conta do que estava acontecendo. Entenda, Janet: Eu tentei fazer as coisas serem diferentes. Não foram uma, nem duas vezes.... Eu tive meus motivos. Tentei fazer com que o ciclo fosse rompido antes de chegar a um final trágico. Por isso (em partes), sei que tenho culpa.

─ Então você.... ─ Janet tentou, mas não conseguiu concluir sua frase.

─ Por favor, por favor. Não me encha de perguntas. Ainda não! Preciso, primeiro, que você termine a sua história. Como te falei antes: "Todas as coisas farão sentido no final. E, a escolha de me odiar ou me perdoar será somente sua", mas.... Preciso antes que você termine de contar a sua história. Quero tentar entender, ao menos, se realmente consegui (de alguma maneira), mudar, ou, melhorar suas vidas. Quero saber por fim, se realmente fiz alguma diferença!

Ao ouvi-la, Janet notou um certo tom de suplica e, com isso, pode entender o quanto a Dama de Negro se sentia desconfortável. A primeira instancia achou demasiadamente estranho ver qualquer resquício de sentimento vindos daquele ser, ainda mais por parecer penoso.

─ Tudo bem, mas.... Eu só queria entender! Euclides...

─ Você vai entender, Janet. Até o final, você vai entender!

Com essas palavras Janet percebeu que não adiantaria insistir, por isso suspirou e recomeçou de onde havia parado.

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Amor, meu doce amor. Um conto para a morte!Onde histórias criam vida. Descubra agora