IV. Não olhe para trás!

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Algumas pessoas falam que o tempo é capaz de curar qualquer ferida...

Hoje sei que isto não é verdade!

Foi ali, dentro daquele celeiro, que morri pela primeira vez! Os dias eram uma repetição eterna e, o fedor de urina das cabras, misturados com o cheiro de leite e doença, fizeram a tortura parecer ainda maior. As noites eram longas e arrastavam-se. A noção das horas se perdia junto a um tédio desconcertante. Na maior parte do dia eu me forçava para dormir, mesmo que sem vontade, com esperança de que na próxima manhã eu fosse liberta e, os pesadelos sempre vinham a me assombrar.

Demorou alguns meses até que pudesse me por de pé novamente, mas, enquanto lutava para me reerguer, aquela ferida em meu peito só aumentava. Com isso, todos os meus sentimentos se definharam e murcharam até que restasse apenas a escuridão. Possessa de um insólito desgosto e de um certo rancor, eu já não rezava mais pelas duas, nem por mim. A amargura fez crescer um ódio inconsciente e, meu amor foi transformado em algo incompreensível!

Acabei por descobrir que é possível odiar alguém, mesmo ainda a amando! Diante destes sentimentos, pensei que nunca mais seria capaz de chorar por algo, ou, sentir qualquer outra coisa além do medo e do desprezo. Meu corpo continuava vivo, mas minha alma estava despedaçada e prestes a ser enterrada!

Foi quando: Priscila reapareceu.

É interessante notar que: em suas últimas visitas, a menina não trazia mais consigo o seu diário, nem se quer conversava comigo, mas desta vez.... Eu ainda não consigo descrever como, mas havia algo assustador em seu semblante. Ela estava muito maior, seus olhos pareciam mais escuros e decididos. E, seu cheiro trazia algo incomum. Ela havia se tornado uma mulher! Uma mulher seus plenos 15 anos.

No fundo de minha mente eu me perguntava:

"Quando isto aconteceu?! Será que perdi uma parte tão grande assim da minha vida?"

E, mesmo que isto não justifique, ou, que não seja de toda a verdade... Foi por isso que eu fugi lá: Porque não me restava mais amor algum! Tudo estava diferente e estranho. Tudo por culpa daquele homem...

Naquela manhã, Priscila adentrou o celeiro com um prato de comida, jogou-o em um canto e, se pôs a tirar o leite das cabras. Mais uma vez, a menina parecia indiferente a minha presença. Seria mais um dia comum. Seria... se não fosse a porta entreaberta.

A luz dourada do sol ardia em meus olhos e parecia me chamar. Em seu silêncio quente e aconchegante, ele parecia me implorar para que visse a vida que estava desperdiçando... Foram seus tentáculos de ouro que trataram de me arrastar pelo caminho e, em um momento de distração, me encaminhei a porta.

Quando me dei conta, já estava do lado de fora!

O cheiro da mata e a grama quente em baixo de meus pés me despertaram uma nova esperança e um novo desejo: Queria poder viver a vida plenamente, sem nunca mais precisar ficar trancada naquela masmorra.

O longo campo me chamava para correr, mas minhas pernas mal conseguiam caminhar. Eu estava manca e, me arrastava, tropeçando. Meus olhos se fixavam no chão... sentia medo de olhar para frente. Tudo parecia tão imenso, tão claro e dolorido.

Alguns passos à frente e, Priscila finalmente deu por minha falta. De onde estava pude apenas ouvir a porta do celeiro se abrir com um ranger alto e um estalo.

─ Baaam.

Meu coração disparou.

O que ela iria fazer se me encontrasse do lado de fora? Será que me arrastaria novamente para aquele lugar frio, sem nenhuma compaixão?!

Sem pensar direito nas consequências, tentei correr. Neste instante, acreditei que a minha única saída era fugir! O resultado foi frustrante. Andei pouco mais de dois passos e cai. Olhei para trás e presenciei Priscila caminhando em minha direção.

"Não... não quero voltar lá para dentro!" Eu pensava baixinho.

Recompus-me, novamente e, trôpega comecei a caminhar.

Minha amadinha era mais rápida que eu e se fazia cada vez mais próxima de mim.

Mary, por sua vez, que devia ter ouvido os ruídos vindos do celeiro, se apressou e, abriu uma fresta da cortina da cozinha. Nossos olhares se cruzaram e, tudo que vi através de sua expressão foi indiferença.

Era doloroso ver a frieza daquela mulher que poderia chamar de "mãe"!

Eu tremia de pavor e euforia, meu corpo inteiro estava ouriçado. Não havia mais voltas!

Foi por isso que dei as costas a elas e corri o mais rápido que pude, adentrando a floresta que circundava a casa. Pensei que Priscila desistiria de me procurar quando me visse embrenhando no mato, mas ela continuou a me perseguir.

─ Janet.... ─ Eu podia ouvir sua voz gritando enquanto corria, desesperada, dentre as arvores...

Se fiz a escolha errada?! Sinceramente... até hoje não sei responder. Mas, não queria mais ter que viver ali. Não queria mais ter que voltar a encarar Richard, ou, ver os olhos encharcados de indiferença de Mary.

─ Janet, onde você está?! Por favor, minha mãe vai me matar se você sumir! ─ Ela me perseguiu por um bom tempo.

No fundo eu temia o que poderia acontecer a ela, mas, meu medo era maior, me impedia de parar.

"O que farão comigo se me encontrarem?! Não posso voltar para aquele celeiro. Não está certo! Não é justo!"

Foi assim que dei as costas a minha vida: por medo; por desconsideração; por.... Pelo desprezo silencioso que havia se enraizado nos olhos de Mary; pela solidão que me causava a presença fria de Priscila.

Enquanto seguia meu caminho, minhas lágrimas rolavam. Eu não era capaz de olhar para trás! Meus sonhos, minha esperança, meus amores... Todos os sentimentos transbordavam em mim. Despencava a Minh 'alma e tocavam o chão como fosse um suicídio: os pedaços de minha alma putrificada se desprenderiam do meu corpo. Seria mais fácil assim... Todo o meu passado ficaria enraizado, para todo o sempre, distante de mim!

Foi assim que, passada por passada, a minha vida se distanciou. Eu não conseguiria encarar tudo que estava deixando para trás; não conseguiria olhar o rosto de Priscila, nem mesmo para lhe dar Adeus. Por isso, segui adiante, sempre com os olhos vidrados na vida nova que me esperava.

Foi assim...

Eu corri o máximo que pude, para o mais longe o possível. Corri para longe da dor e da tristeza... Mal sabia que elas me acompanhariam até o fim!

No outro dia, quando o sol nasceu, eu já estava acordada. Ainda com fome (e, agora, com sede), continuei a trilhar meu destino. Estava tudo confuso em minha mente, mas bem lá no fundo, não havia arrependimentos!

"Minha mãe, minha irmã, minha vida..."

Desde a chegada daquele homem tudo havia se perdido.

No fundo de meus pensamentos eu xingava Richard e acabava por colocar toda a culpa nele:

"A culpa não é minha. Não.... Foi aquele homem... Richard. Aquele maldito!"

O que me restava, no fim de todo aquele desgosto, era sempre uma espécie de abando condoído.

" .... Será que Priscila sentirá minha falta?! Será que ela irá procurar por mim?! Será que ela está bem?!"

Por dias, pensei em voltar, quem sabe pedir desculpas; mas eu não podia, não enquanto aquele homem estivesse lá... No fundo, tudo que desejava era que fossemos apenas nós duas, novamente, deitadas no campo, olhando o céu, com a brisa calma do vento a nos consolar. Porém, algo em mim se remexia e me dava uma estranha certeza de que aquilo nunca mais voltaria a acontecer. 

Amor, meu doce amor. Um conto para a morte!Onde histórias criam vida. Descubra agora