I. Memórias avulsas.

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O inverno morria junto ao adormecer preguiçoso do dia. O céu era mais cinzento que nunca e suas nuvens anunciavam a chegada de uma tempestade duradoura: dessas renitentes, que insistem em adentrar a madrugada.

Apenas mais uma noite longa e solitária...

Por de baixo do meu corpo ainda escaldavam vivas as brasas do chorume negro das estradas. A Solidão me enamorava e, mais nada! Não havia ninguém, em lugar algum. Ninguém.... Apenas "Eles".

A minha volta, enormes sombras se projetavam pelos beirais e gigantescos monumentos de concreto se erguiam diante de meus olhos. Eram tão altos que me deixavam tonta de olha-los. Minhas vistas, embaçadas, enxergavam tudo em tons de cinza. O mundo era uma profunda escala sem cor, composta unicamente de um degrade titubeante.

Milhares de pernas transitavam, indo e vindo e, todas pareciam me cheirar bem, mas o esgoto abaixo de seus pés me trazia à minha mente lampejos delirantes sobre as suas verdadeiras identidades.

"Eles... No fim de tudo, o mundo se resume a Eles!"

Seus perfumes eram caros; suas roupas coloridas e extravagantes.... Queria eu poder vê-las em seus tons vivos e vibrantes, mas tudo que conseguia enxergar era uma escala monocromática e sem vida:

Branco, cinza e incolor... Neste momento, eu era o preto. Era a sombra das marquises e, estava bem diante de seus olhos. Pequena, negra e imóvel.... Eu era a escuridão que se oculta nas ruelas sujas da cidade; era o reflexo indesejado e obscuro de suas almas.

"Eles prosseguem..."

Pensava inquieta.

"Os mentirosos e enganadores prosseguem a caminhar com suas máscaras."

Neste exato momento, eu era o dejeto silencioso da vida: A sombra da escuridão. Um substantivo de uma frase, sem propriedade alguma de um nome. Já, "Eles".... Eles eram barulhentos e irritantes, com suas enormes máquinas metálicas que cruzavam as ruas à alta velocidade!

Minha barriga roncava e ardia de tanta fome. A quantos dias estava sem comer? Um dia, dois... uma semana?!

"Eles" eram mais sujos que eu: Mesmo enquanto deitada sobre o chão encardido. "Eles" eram mais fétidos que o esgoto abaixo de seus pés. E, acima disto: "Eles" eram inegavelmente, cegos!

Eu estava ali....

Estava ali, mas ninguém me via.

"Eles" não me viam porque, no fundo, não queriam me ver!

Já havia se passado algum tempo desde que havia fugido de casa, mas as lembranças do último carinho, do último afago; da última vez em que pude me sentir amada; estas se faziam ainda mais distantes.

Para ser mais exata: Uma eternidade.

Esta era a medida mais plausível desde a última vez em que havia recebido um carinho; aquele estranho afago desconcertante, carregado com um ranço de adeus entranhado dentre o ensebo dos dedos.

Malditas eram estas lembranças, que me pareciam irreais. Eram como partes de um sonho do qual esperava não ter de reviver, mas que sempre acabava por voltar a mente.

Com o meu "Adeus", muitas coisas foram deixadas para trás. Meus sentimentos se encontravam partidos e perdidos dentre o tempo e a memória. Mas, neste dia em particular, havia algo que me embrulhava o estomago e me trazia de volta à mente a minha tão pequena e adorada Priscila.

Minha pequenina... Como ela cuidava de mim!

Eu não queria admitir, esta é a mais pura verdade! Mas, ainda assim, esta coisa dentro de mim cismava em se sentir viva ao memorar o que ousava chamar de: bons tempos. De algum modo os pensamentos sempre acabavam se voltando aos momentos em que nós duas passávamos à tarde inteira deitadas embaixo de uma grande árvore e isso me fazia sentir dolorosamente viva!

Amor, meu doce amor. Um conto para a morte!Onde histórias criam vida. Descubra agora