A DOR DE MUDAR

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Néftis

Fui deixada para morrer. Imagino que seja uma tradição. Não sei se estou viva ou morta, é como se minha consciência pairasse no vazio, mas sem conseguir ir a lugar algum. De repente, o frio como o de uma estrela gelada, pairou sobre o meu corpo, fazendo-o sacudir-se. Mortos sentem frio?!
Agonizei aquela sensação nefasta como se cada célula do meu corpo estivesse congelando, inclusive meus ossos. A trepidação causada pela onda de frio fez meus dentes trincar. Nem no pior cenário imaginado julguei passar por isso um dia.

Sequer consigo ponderar o quanto de tempo essa agonia tem durado; o pico de subida da dor parece nunca poder ser alcançado. Mesmo assim, não gritei em momento algum. Não daria esse gosto para o Ceifador. Aquele monstro não merece absolutamente nada de mim.
O frio se estabilizou, assim como começou. Então, uma pequena fagulha, como uma chama acesa, começou a me aquecer. Isso foi reconfortante, mas só por um instante. Só até a sensação do calor de um vulcão me atingir. Meus fluídos corporais entraram em ponto de ebulição. Apertei os dentes com força, sentindo-os imediatamente quebrar. Sentia-os soltos na minha boca. Cuspi o que deu, tentando não me engasgar com a massa que sobrara.

Agora a dor que estalou através dos meus ossos me fez quase gritar, porém mordi o lábio, impedindo qualquer som de sair. Ouço estalos por toda parte, tudo está se partindo. Minhas vísceras estão se retorcendo, como se mãos estivessem fazendo isso. Sinto como se meu coração fosse explodir; batia acelerado, não de uma forma quando se pratica uma atividade física.
Esta deve ter sido a tortura que todas as fêmeas antes de mim foram obrigadas a passar. Estou tão arrependida de não ter saltado para o abismo. Decerto, teria sido menos doloroso. Por que não morro de vez?! O que me prende neste plano?!

Meus membros estão moles; não há um osso sequer inteiro em meu corpo. Meus órgãos estão falidos. Como é possível que eu ainda esteja viva?! O que aquele monstro fez comigo?! O pico de dor, dessa vez, foi mais difícil de alcançar. E quando finalmente chegou e estabilizou, eu já não tinha certeza se aguentaria sem gritar, sem me romper em desespero maior do que já me encontrava.
Não tenho ideia de quanto tempo se passou.  A próxima onda de dor que me atinge, está numa escala cem vezes maior do que o pico que atingi com meus ossos se partindo.

Mas agora, tudo parecia voltar pro devido lugar. Eu pude sentir como se fossem reconstruídos, minha pele se esticando sobre meus músculos e ossos. Meus órgãos acharam o caminho de volta em suas próprias cavidades. Meu cérebro já não estava em ponto de fusão. Então, ouvi meu coração desacelerar e desacelerar…estava parando?! Depois de tudo que passei, ele pararia?! Não, não era isso. Ele se estabilizou num ritmo muito lento para ser normal, mas não me senti mal com isso. Minhas gengivas coçaram , e então senti novos dentes saírem. Meu couro cabeludo pinicava…mais alguns momentos, e apenas o torpor.
Será que estive alucinando?! Não consigo abrir meus olhos. Estou tão exausta. Não faria mal descansar um pouquinho, não é?!

É reconfortante a sensação de flutuar em água. Não sei se estou viva ou morta, mas isso é melhor do que o que tive antes. Não entendo porque minha mente continua trabalhando a mil. Não deveria apagar também?!
De súbito, ouço passos e eles são como trovoadas, mesmo no carpete macio. Minha audição começa a latejar.

— Pobre fêmea! Sequer teve chance! — Ouço a voz feminina e meus tímpanos zumbem em resposta.

— Outra mais! — uma segunda voz fala — Esta não gritou, talvez não tenha sofrido a tribulação! — elas estão falando de mim?!

Espera um pouco, conheço essas vozes. São as fêmeas que me prepararam para o Ceifador. Hum…Andry e Uriah, são seus nomes. Oh, por que consigo ouvir seus corações?! Isso devia ser possível?! Senti quando o lençol foi puxado do meu corpo. Aliás, nem mesmo sei como ele foi parar ali.

— Irmã, o cabelo dela não era noutro tom?!

— Estou segura que sim!

Essas duas vão fazer minha cabeça explodir. Não estão gritando, nem nada, mas é como se uma tempestade cósmica estivesse acontecendo dentro deste quarto.

— Falem mais baixo, por favor…— balbucio como se tivesse acabado de aprender a falar.

— Pelos deuses, ela está viva! — praticamente gritam em uníssono, o que me faz tapar os ouvidos.

— Parem, parem! Estão querendo me matar?! — praticamente suplico voltando meu rosto para elas, tentando encará-las.

Minha cabeça lateja. Meus olhos doem com o impacto da luz. Mal consigo focar nelas.

— Ela se transformou…

Mas qual o problema dessas duas, por que não podem, simplesmente, manter suas bocas fechadas?!
Finalmente, elas parecem entender que estão incomodando e saem apressadas, mas uma manada de feras teria sido mais silenciosa pisoteando tudo em seu caminho.
Ah, o silêncio! É tão agradável! Só não posso ficar nessa cama para sempre. É mesmo uma pena!
Sobrevivi e é questão de tempo até que o Ceifador entre por aquela porta para terminar o que começou. Como vou lidar com essa situação?! Preciso dar um jeito de avisar minha rainha! Ela terá que preparar o povo para o que está por vir. Céus, não temos tecnologia suficiente para uma evacuação em massa e ainda que tivéssemos embarcações bastantes, onde nos refugiaríamos?!

Forcei meu corpo para fora da cama, falhando miseravelmente nas primeiras tentativas. Quando consegui descer da cama, cai no chão. Por que estou tão desengonçada?!

— Minha rainha?!

Ah, não! Elas voltaram e, desta vez, com mais ajuda. Tapo meus ouvidos para não ouvi-las mais. Minha audição está me matando, até mesmo se uma pétala de flor caísse no chão, ia me perturbar.

— O que querem?! — olho entre eles sem ainda conseguir enxergar bem, mas pela túnica, há um sacerdote ali.

É ele quem se aproxima de mim e põe um tecido em volta do meu corpo.

Beba isso, minha rainha!

O que está acontecendo aqui?! Ouço ele falar na minha mente, mas seus lábios sequer estão se movendo. De toda forma, meus ouvidos não estão sendo machucados.

Beba! Vai se sentir melhor!

O que tenho a perder?! Se ele quisesse me matar, já teria feito. Então, abro a boca e um frasco é deitado em meus lábios.

— Hum! — Gemi de prazer quando o sabor explodiu em meu paladar.  Se isso não é o néctar dos deuses, não sei o que seria qualificado para sê-lo.

Assim que o líquido se assentou em meu estômago, minhas células tomaram vida, como se tudo voltasse para o devido lugar e se recordasse de suas funções. Minha visão se ajustou. Agora consigo vê-los perfeitamente. Aliás, juraria ter conseguido ver através de suas peles , por alguns segundos.

— Providenciem uma alimentação adequada para sua majestade! — o macho ordena e então volta a me olhar.

Tento ver através dele qualquer má intenção que seja. Não há nada. Aliás, tem!

Por que há esperança nesse olhar?!

NÉFTIS E O CEIFADOR DE MUNDOS: Contos Alienígenas Onde histórias criam vida. Descubra agora