TRINTA E UM

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Callia

No dia seguinte, as serviçais me levaram para um banho. Mal conseguia me locomover propriamente e não sabia dizer se ainda estava retardada pelo efeito das medicações ou pela dor desmedida que viajava por cada centímetro do meu ser. Havia uma banheira preparada para mim na qual me recusei a entrar.

Eu não poderia mergulhar novamente.

Eu não poderia encontrar a água desta forma novamente sem que a caixa de vidro me acovardasse.

Aquilo ainda era uma das minhas memórias mais vívidas.

Eu me lembro de cada segundo onde me senti morta.

Com este detalhe me impossibilitando de encarar uma simples banheira, o banho acabou sendo mais longo e doloroso, sentada em um chuveiro improvisado. Meus cortes inchados e vermelhos latejavam em dores ardentes a cada poção anti-inflamatória despejada sobre eles.  A vontade de desdobrar os membros se esvaiu assim que fiz o primeiro movimento para voltar à cama. Meu corpo repuxava frágil sob as novas ataduras, me induzindo a simplesmente desistir e aceitar que talvez eu nunca ande ou me mova novamente.

Talvez se eu desabar no chão e ficar paradinha a dor vai sumir, ponderei em agonia.

Continue, Escolhida.

De noite, minhas ataduras já haviam sdo trocadas mais de sete vezes e em sua maioria grudaram em cada um dos cortes tornando um processo triste ainda mais torturante de todas as formas possíveis. Devido as dores, precisei injerir poções que me deixariam desnorteada e dopada o suficiente para adormecer; ainda assim com horas quebradas de sono recheadas de aflição e um gosto amargo em minha língua. O tempo pareia passar mais devagar à cada tentativa de trocar de posição.

Eu voltei a andar  sozinha no dia seguinte, ainda que com dificuldade.

Acho que depois de ontem, passei a ter um novo nível de respeito por Lowan.

Ele passou muito mais do que a metade de sua vida sendo ferido de formas perturbadoras em todos os cantos possíveis de novo e de novo. E ele era proibido de buscar cura. Emma nem sempre conseguia recorrer às fontes de cura para ajudá-lo; Lowan tinha esperar os cortes se curarem sozinhos, ou aguentá-los por dias seguidos, até que seu estado piorasse terminalmente e alguma cura barata tivesse que ser buscada para previnir sequelas ou sua morte. Abusaram de seu corpo de tal forma que seus cortes com certeza deixaram marcas além da pele.

Acho que eu nunca seria capaz de aguentar viver naquelas circunstâncias.

Mas ele — incrivelmente — foi. E por muito tempo escondeu seu dom porque era o mesmo dom que cortava sua pele sem pena. Porque sua mãe é viciada em poder. E talvez ele também seja.

Agora ele sente isso.

Me pergunto como são as noites de Lowan.

Me pergunto se ele realmente teria coragem de nos trair.

A mesa do café da manhã é agitada. Pratos passam por mãos e mãos de pães, frutas, sucos e tortas. Talvez seja a primeira que todos comemos juntos. Exceto por Emma. A ex-General costuma ser pontual e normalmente faz as refeições conosco, então sua ausência é estranha.

Ainda que muitos finjam que tudo está bem, não é verdade. Ninguém ousou olhar nos meus olhos desde que saí do quarto; o círculo de Oriwest privou Lowan de qualquer reunião para discutir estratégias e não se deram ao trabalho de se dirigir à ele pessoalmente; Norvell decidiu esclarecer o coma de Peter e agora todos sabem que ambos são conectados por suas sensações além de visão, e que as sensações podem piorar se a distância entre os mesmos aumentar. Me pergunto como isto começou, já que vi Peter no passado, quando Elena ainda estava viva, e ele não portava o olho negro.

Encantadora Sombria (em revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora