Apoiadas na moldura da janela, as duas mulheres observavam a chuva fina cair sobre as cabeças de quem ainda estava nas ruas. Suas mãos estavam entrelaçadas, os dedos finos e magros denotavam que a saúde de ambas fora abalada. Havia dias que elas não preparavam comida, as panelas começavam a criar poeira amontoadas nos armários. Durante esse tempo, apenas bebiam água e comiam sanduíches de presunto simples. Suas preocupações eram tantas que a rotina tornara-se impraticável, lançando-as em um princípio de depressão.
Hope sorriu para a companheira ao seu lado, sua pele parda com traços indígenas reluziu quando um carro virou a curva com os faróis acesos. Sunshine notou que a friagem arrepiara a pele da garota e a puxou levemente para junto de seu corpo, passando seu braço por cima do ombro.
— Acabou. Finalmente, eu posso chamar você de meu amor sem me preocupar com o que pode te acontecer. — A mulher de vinte e cinco anos tinha os olhos marejados. Se eu estivesse ali certamente não veria tristeza sendo emanada de sua alma, seu alívio de estar ao lado da pessoa amada transparecia em lágrimas. — Conseguimos, nós vencemos.
— Mas custou caro. — Hope encostou a cabeça no ombro da companheira. Os fios loiros de Sunshine se misturavam aos seus cachos morenos. — Soube que minha mãe queimou minhas fotos de quando era pequena, destruiu minha roupa de batizado e agora se nega a acreditar que eu existo. — As lágrimas rolaram até o pescoço, o polegar da amiga e companheira tentava secar o líquido. — Meu pai me ameaçou e me proibiu de procurá-los.
— Você se lembra do que meu pai fez comigo? — Sorriu da própria desgraça. — Uma pistola apontada na minha testa, minha mãe gritando desesperada para ele. Uma surra regada a punhos fechados. — Ela se recordava com pesar da reação dos pais ao ouvir da boca dela que era homossexual. — Duas costelas quebradas...
As mãos se apertaram mais, ambas buscaram o carinho e o calor da outra.
— Por que sempre buscamos complicar as coisas? Não era tão mais fácil nos aceitarmos como somos? — Sun apertou os lábios. — Esses seres humanos vivem buscando complicar as coisas, se fossemos mais compreensivos, buscássemos um diálogo, certamente tudo se resolveria muito melhor. — Esperou a companheira dizer algo, mas como o silêncio se ergueu, continuou. — Nunca mais teríamos crises, fome, filhos sofrendo, se fosse a compreensão, o respeito e carinho uns para com os outros.
— Isso vai acontecer, um dia toda essa complicação vai ser lembrada como um atraso, um erro sem tamanho para o mundo. Eu acredito que essa situação vai se reverter. — Murmurou Hope cansada e sonolenta.
Elas haviam acabado de encerrar uma batalha que travavam desde a adolescência, uma guerra silenciosa e devastadora cujos inimigos eram o mundo e elas próprias. As famílias Luzias e Mavcline eram tradicionais, ricas e abastadas. Elas participavam de diversas festas de nomeação e eventos cujas personalidades vigoravam próximas ou mesmo dentro dos dez mais influentes do mundo. Fora justamente em um destes encontros que Hope Mavcline e Sunshine Luzias se encontraram pela primeira vez. No início nem mesmo as duas queriam aceitar a atração e os sentimentos que nutriam, porém algo as impulsionava, uma força que as fazia seguir em frente mesmo em meio às piores adversidades. Elas não ousavam dizer a palavra amor uma para com a outra, o risco era imenso. Mas cada encontro, cada beijo, cada abraço as tornava mais fortes e preparadas para enfrentar suas famílias.
— Agora que estamos juntas podemos ser honestas conosco mesmas. Foram dez longos anos de repreensão, merecíamos ser felizes. — Sorriu nostálgica ao se recordar do passado. — Até mudar nossos sobrenomes fomos obrigadas, vê se pode?
— Você tem razão, foi uma condição do seu pai. "Não quero ter ligações com vocês e essa pouca vergonha" — Hope secou as lágrimas enquanto mudava a entonação da voz para dar um ar de imponência à citação do sogro. — Engraçado que no cartório quando perguntaram se éramos irmãs, você confirmou.
— "Somos filhas de mães diferentes" — Sun recitou a desculpa dita no cartório para validar a mudança. Abriu um sorriso para a esposa. — O policial que nos abordar e pedir a documentação vai achar que praticamos incesto, sabia?
— Sim. — Respondeu a morena sorridente. — Mas eu amei nossos sobrenomes novos. Me lembre de dar um bônus para seu amigo do cartório, sem ele não conseguiríamos fazer isso.
"Pouca vergonha"
As palavras pixadas na parede da casa eram uma manifestação hedionda dos vizinhos que não apoiavam a relação das recém-chegadas. A calçada bem conservada tinha algumas latas de tinta spray jogadas: preto, vermelho e azul. O bairro em que residiam não era um lugar pobre, porém não existia nenhum luxo ali. Sua casa destoava das restantes, padronizada pelos portões e garagens, devido ao muro que servia para ampliar o espaço útil do terreno.
Naquela noite, Hope começara a fazer a janta: arroz, feijão, carne cozida e salada, uma refeição bem caprichada para duas mulheres franzinas que já quase se esqueciam do que era louça suja. Em meio ao barulho das panelas de pressão e do borbulhar da água do arroz, a morena escutou uma batida forte na porta.
Pensou em ignorar o ruído, poderia ser apenas um garoto sapeca querendo chamar atenção, mas e se não fosse? E se fossem seus pais fazendo uma visita em sinal de aceitação? Hope era como seu nome, esperançosa. Rezava todas as noites para que sua família fosse iluminada pela lucidez e aceitasse sua orientação sexual.
Mão na maçaneta, chave virada, porta aberta.
Seus olhos não encontraram nada à sua frente, seja lá quem tivesse sido, saíra sem deixar explicações ou dizer o que queria. As luzes do quarteirão inteiro apagaram. Durante os segundos que se seguiram, Hope sentiu um ar gélido rodear sua pele. O calafrio desceu desde a nuca até o fim da espinha.
Um choro a assustou. Seus olhos desceram calmamente buscando localizar a fonte dos prantos infantis. Não tardou até notar ao lado de sua porta um cesto de palha com uma alça. Em seu interior, coberto por panos de seda, alguma coisa se movia.
— Sunny! — Gritou a Mulher em direção ao interior da casa. Hope abaixou-se e começou a esmiuçar entre o tecido. — Ai, meu Deus! — Exclamou ela levando a mão à boca.
Sunshine era a mais lógica das duas. Ao ouvir sua amada gritar por seu nome, seu coração disparou. A queda abrupta de energia era algo que a deixava tensa, mas o esbravejar de Hope a fez esquecer de tudo e correr em direção à porta com os punhos cerrados.
— O que foi amor? — Sun se aproximou rapidamente. — De onde veio isso?
Mexendo os pés rosados em movimentos de chute, um bebê agitava-se debaixo dos lençóis. A pequena criança de pele miscigenada sentia um incômodo terrível e estava prestes a berrar a plenos pulmões. O apoio sobre o qual sua cabeça repousava parecia desconfortável, mas não teria como ser diferente, afinal, era um livro rígido de capa negra.
— Quem seria o miserável de deixar um bebê ao relento? — Sun tomou a criança nas mãos, sem sinais de ferimento aparente e sem o cordão umbilical. Ela notou seu sexo. — Um menino. Um menininho lindo! — Hope apressou-se, cobriu o pequeno e ambas adentraram a casa.
Apenas quando a porta se fechou, as luzes se restabeleceram. Elas não viram, mas do outro lado da calçada, um grupo de quatro homens fitava a residência. Vestidos de jaleco branco, eles galgaram a rua acima, apreciando as gotas de chuva que começavam a se intensificar.
— E agora? — Indagou Guardande, esticando as mãos com os dedos entrelaçados.
— E agora? — O Doutor tocou-o no ombro e abriu um sorriso promissor. — Esperamos, meu amigo... — Liberou o ar dos pulmões e levou as mãos ao bolso. — Esperamos.
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CONTOS: Histórias de universos em construção
Cerita PendekOUÇA OS TEXTOS NARRADOS NO CANAL NO YOUTUBE: WWW.YOUTUBE.COM/facesdoheroibr Neste livro serão postados os contos que acabo criando durante viagens pelo infinito rio da imaginação. Algumas são relacionadas a livros que estou trabalhando, outras apen...