Sorria sempre

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Sorria

O fim de semana para muitas pessoas é um descanso, mas isso não é uma unanimidade. Em todos os lugares e setores existem aqueles que se veem mais atarefados justamente nesses dois dias.

Um bom exemplo disso são os profissionais das ligações, os famosos atendentes. Para muitos não existe fim de semana, seus horários têm de ser diferentes, do contrário os clientes não conseguiram ligar para reclamar que seus celulares que não ligam por estarem descarregados.

— Tá acabando, graças a Deus.

Naquele momento o relógio batia as três horas da tarde de um sábado, o atendente, conhecido por todos como Ezequiel, esticava-se em sua cadeira. A partir daquela hora nenhuma ligação poderia aparecer mais, ao menos era isso que ele imaginava.

— Ah, não cara! Que desgraça!

Levantou-se de sua cadeira e olhou em volta, sabia que algum colega de outro setor o transferiu aquela ligação de propósito para se livrar do cliente. Se pudesse teria arrancado os olhos do responsável pela astúria, mas o cliente estava a sua espera e ele não iria derrubá-lo ou transferi-lo.

— Ezequiel boa tarde com quem eu falo? — Perguntou controlando-se para não descarregar a ira em quem não deveria.

Vinte e dois minutos mais tarde a chamada se encerrava, os colegas de Ezequiel já haviam ido embora e só havia sobrado ele na central inteira. Normalmente ele teria recolhido suas coisas e saído porta a fora enfurecido com aquela sacanagem sofrida, mas por alguma razão ele simplesmente deixou para lá.

Calmamente ele foi até o banheiro lavar o rosto e retirar todo o resquício de stress que sua expressão ainda apresentava.

Aquele ritual de lavagem facial o refrescava e levava embora pelo ralo todos dos xingamentos que ele recebera no dia. Observar os itens dispostos ali dentro era outra maneira de apagar tudo de ruim que ele acumulara; papeis bem posicionados pia de granito bem seca e limpa, sabonetes cheios e espelho impecável.

O atendente sempre percebera que aquele banheiro era bem cuidado, no entanto jamais viu a pessoa responsável por aquilo. Não até aquele momento.

Um senhor, cuja idade era bastante avançada, arrastava naquele momento uma sacola de lixo para fora do banheiro.

— Não pensei que ainda tivesse alguém aqui. Acabou ficando preso por um cliente, não foi?

E o atendente respondeu com um aceno positivo com a cabeça.

Ezequiel não sabia porquê, mas ele sentia algo diferente ao olhar para aquele homem, uma espécie de orgulho misturada com tristeza. Era como se ele quisesse ajudar aquele trabalhador em algo, mas ao mesmo tempo não sabia em que este precisava de ajuda.

— Você deixa esse banheiro sempre impecável sabia? Meus parabéns. — O atendente se odiou por não ter palavras melhores a dizer.

— É porque eu faço meu trabalho sorrindo.

E com isso o homem abriu um sorriso singelo e puro.

— É só isso que eu tenho da minha vida, é só o que me dá motivo para viver, nada mais justo que eu sorrir disso. — E ao ver que o rapaz não falara nada emendou. — Claro que eu adoraria ter conseguido alcançar meu sonho, mas tudo bem.

— O qual era seu sonho? — Respondeu o jovem rapaz engolindo seco.

— Eu queria ser policial, mas nunca tive estudo para isso.— o faxineiro amarrou a sacola e a deixou separada.

— Entendo, é uma pena. — E o próprio atendente pensou na vida que ele levava e como ela não era aquilo que ele sonhara.

Eles ficaram se olhando por alguns segundos, um se vendo no outro. As oportunidades perdidas, os inúmeros caminhos que poderiam ter sido trilhados mas nunca sequer foram vislumbrados.

Eles desviavam o olhar mas voltavam a se encarar logo depois, e assim foi até o senhor quebrou o gelo.

— Bom, mesmo sendo um prazer enorme deixar esse lugar limpo para vocês. — foi até os fundos do banheiro e retirou as botas de plástico que usava e ficando apenas com os sapatos próprios.— Eu também preciso descansar, estou quebrado hoje.

— Eu... — Ele não sabia o que dizer, apenas sentia uma tristeza vindo daquele homem.

— Não se preocupe em agradecer, eu já estou feliz por você ter me notado. Eu me esforço todos os dias e ninguém nota, é triste mas algumas profissões são invisíveis aos olhos dos outros.

Ezequiel sentia-se péssimo por perceber, só ali, que aquele homem estava sempre a sua vista, mas nunca havia dado a devida atenção; fosse por que não havia por que reclamar de seu trabalho; fosse por estar envolto na própria vida.

— Eu é...

— Está tudo bem garoto, enquanto eu conseguir sorrir por fazer o que dá sentido a minha vida, tudo bem. — E com isso ameaçou sair do banheiro. — Ah, antes que me esqueça. Não importa o quão ingrato e triste seja o mundo, sorria sempre.

E o atendente ficou ali, refletindo por algum tempo até que conseguisse ir embora para casa.

O domingo veio e passou, assim como a segunda e terça-feiras. Durante esse tempo ele ficou a notar que o banheiro, aos poucos acumulava sujeira. Sempre que o usava notava seu estado piorando além, é claro, de perceber que as botas do faxineiro continuavam no mesmo lugar.

Foi só na quarta feira, quando três privadas entupiram, que perceberam a falta do homem da limpeza. E quando a empresa buscou saber, descobriu-se que ele falecera em casa na noite do último sábado enquanto dormia.

CONTOS: Histórias de universos em construçãoWhere stories live. Discover now