Clara.

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Quando eu era apenas uma criança, meus pais brigaram brutalmente com uma garrafa de vidro grande. Tive a impressão de que eu não estava mais naquele mundo, pois enquanto eles se matavam no andar de baixo, eu ficava no andar de cima no meu quarto desenhando desenhos de uma família feliz que havia visto na TV em programas infantis. Eu me reunia todos os dias às exatas 16h da tarde para assistir um programa chamado "fantastic family", onde mostrava a criação das mães e pais com seus filhos. Eu ficava feliz por ver que, mesmo que as crianças errassem, a maioria dos pais não repreendiam eles com agressão, deixando eles com hematomas. Aos 10 anos, presenciei mais uma briga dos meus pais, onde meu pai saiu de casa sem rumo enquanto estava bêbado e nunca mais voltou. Só havia eu e minha mãe, a qual costumava me tratar mal desde que meu pai sumiu de casa. Quando ia para a escola, tinha que usar casacos mesmo no verão para disfarçar meus hematomas. Lembro de uma vez que estava desenhando ao invés de servir o jantar para um homem que estava paparicando minha mãe na sala.
- Clara! Venha aqui. - minha mãe havia gritado pela terceira vez. O tal homem pegou no braço dela e disse que poderia resolver isso se ela não se intrometer. É óbvio que ela aceitou e o homem foi no meu quarto. Ele chegou, jogou minha mesa contra a parede, puxou meu braço para a cozinha gritando "pirralha inútil." Foi uma das últimas coisas que me recordo antes de fugir da casa da minha mãe. A voz dele ecoava nos meus pensamentos.
Pirralha inútil. Pirralha inútil. Pirralha inútil.
Eu havia completado 13 anos quando conheci Pâmela, que não tinha os pais presentes, então eles não precisavam saber que eu estaria na casa deles. O mais bizarro é saber que eles não eram presentes ao ponto de não saberem que sua própria filha trouxe uma desconhecida de menor para morar na casa durante 5 meses. Minha mãe não se importou quando me viu saindo de casa com um capuz na cabeça e mochila nas costas. Na verdade, ela já sabia o que eu estava fazendo e o motivo, então ela se levantou do sofá com aquele rosto com linhas de expressão e olheiras intensas com rímel borrado e me deu um último abraço pelas costas. Não foi necessário eu olhar no rosto dela, eu estava paralisada na porta. Talvez fosse a primeira vez que ela me deu um abraço...
Quando havia me dado conta, já estava na casa do meu namorado, o Alex. Tínhamos intimidade o suficiente para morar juntos em um pequeno kitnet com uma condição nojenta e desorganizada. Pelo menos, nós éramos felizes e parecia ser para sempre. Até finalmente ele perder o interesse em mim e eu ter que dar pra ele sempre que ele quisesse para não morar na rua. Ele me ameaçava de me expulsar da casa se não fizesse o que ele quisesse, então obviamente eu fazia e faço até hoje para ter onde morar.
- droga, perdi o horário. - na agenda que eu estava abrindo, tinha os horários marcados para certos momentos dedicados ao Alex, como por exemplo: café da manhã às 6h da manhã. Eu havia acordado de 7h, então eu já estava preparada para o pior quando me levantei e fui para o banheiro. Alex chegou de fininho no banheiro e abriu a porta. Meu corpo nu estava exposto e molhado. Ele simplesmente jogou um xampu na minha cabeça com tanta força que me deu uma dor de cabeça na hora e eu dei um grito agudo. Não esperava que as coisas ficassem a esse ponto. Ele se aproximou do chuveiro e puxou meu cabelo com força cuspindo na minha cara. Seu olhar não negava a satisfação que ele sentia em me torturar fisicamente e psicologicamente.
- da próxima vez que atrasar meu café, eu faço pior.

Com o braço junto ao de Emilly, nos aproximamos da sala de aula para mais uma aula chata. Confesso que não tinha tempo para estudar, pois minha ansiedade se fazia presente 24h por dia na minha cabeça. Não conseguia me concentrar e apenas fazia meu olhar vagar pela sala em busca de suprir meus maiores pensamentos sombrios sobre Alex. Ficava  pensando em chegar em casa, preparar algo para Alex comer, fazer faxina, etc. Após algum tempo, finalmente a aula termina e vamos para o refeitório. Aqui na escola, eles servem comida, mas eu sempre prefiro levar minha própria marmita. Tinha algo estranho no meu almoço de hoje ou algo de estranho comigo? Havia perdido o apetite. Guardei minha marmita rapidamente na lancheira antes que Emilly notasse minha estranheza com comida.
- A Pâmela está vindo aí. - ainda bem que ela não notou. Seus olhos estavam focados nos passos de Pâmela. Ela era uma garota de fato incrível e gentil, mas que ao mesmo tempo aparentava estar sempre mal humorada. Por conta do aborto, ela está passando por um momento imensamente difícil, onde ela descontou no cabelo, raspando ele. Seus olhos são castanhos e ela está utilizando brincos de argola com um batom vermelho. Não vou mentir para vocês, ela é uma garota simplesmente muito linda. Parece uma modelo ou algo do tipo, até mesmo o jeito de andar. Ela veio até nós com um sorriso simpático no rosto enquanto toma seu refrigerante no canudinho.
- E aí, qual a boa? - dizia se sentando conosco. Pâmela não fazia parte de mim e de Emilly, mas era sempre bem vinda para conversar conosco o tempo que quisesse. Especialmente comigo.
- estou convencendo Emilly de ir para uma festa junto comigo. - a festa tinha pessoas estranhas que claramente eram drogadas e algumas bêbadas excessivamente, mas Emilly e eu precisávamos nos divertir ao máximo que pudéssemos. Eu recomendo sempre algum tipo de festa para ela, alertando que ela está sempre ocupada demais, mas ela nunca me ouve.
- por que não vai? Seria divertido. - Pâmela tirou o canudo da boca, dessa vez pondo os cotovelos na mesa.
- não vejo graça nessas festas de drogados que vocês tanto falam. - é mentira. Emilly sempre deixou bem claro que gostaria de ir a festas, mas sua mãe não deixa, e é vergonhoso dizer que a mãe não deixa. Óbvio que ela mentiu, tipo, quem gostaria de dizer isso?
- você pode ir comigo, Pâmela? - eu disse. Não me importo se ela for com aquele namorado escroto dela, só sinto que deveríamos ser mais próximas uma da outra de qualquer forma.

após um tempo, percebo que na maioria das vezes, a minha amizade com emilly parece ser divididade em dois momentos: escola e tristeza. Imagina ter uma amiga pra pôr sua cabeça no ombro dela e depois de 5 minutos desaparecer totalmente? Confesso que muitas vezes pensei em me livrar de Emilly, mas não é por mal, não me vejam como antagonista! Eu só estou cansada de ser usada como anti depressivo de Emilly. Fiquei pensando nisso enquanto tentava pôr o meu vestido sem acordar meu namorado. Ele só fica dormindo, e eu não reclamo, afinal, se fosse depender dele, eu nunca mais sairia de casa. É bom que ele durma mesmo. 

Sem rumo.Onde histórias criam vida. Descubra agora