Capítulo XXX - Passado e Futuro

239 28 27
                                    

O coração indignado,
se atira dos cumes do Olimpo;
atravessando nos ombros leva o arco
e o carcás bem-lavrado.
A cada passo que dá, cheio de ira,
ressoam-lhe as flechas nos ombros largos;
À noite se assemelha, que baixa terrível.

— Homero, Ilíada - Canto I, Verso 40

Eros encarava a janela aberta com um olhar distante. No seu colo havia um livro que ele não lia e na cabeceira, um chá que ele não bebia. Os lençóis claros o cobriam da cintura para baixo e o resto do seu corpo exposto pela túnica leve já não tinha mais marcas ou curativos para contar história, mas não eram necessários pois seus olhos vazios diziam muito.

Anteros percebeu um suspiro nascer e morrer dentro dele antes de sair. Por uma das primeiras vezes na vida sentiu que precisava montar uma expressão neutra pois não a tinha naturalmente e odiou a sensação, como se houvesse perdido a face em algum lugar. Um suspiro gêmeo ao primeiro o acometeu e permitiu que ele escapasse minimamente entre os lábios, se sentindo um pai que dá mais liberdade ao segundo filho.

Bateu na porta com o nó dos dedos, anunciando sua presença. Eros migrou os olhos para ele, mas não pareceu surpreso, provavelmente já tendo notado a sua presença ou a sua áurea.

— Posso entrar?

Eros assentiu levemente, sem abrir a boca. Se lhe dissera meia dúzia de palavras desde que acordara fora muito e já faziam quase três semanas. Não questionou porque estava na casa do irmão e deixava-se cuidar mansamente, mas mantinha-se calado e distante, como se estivesse em outro lugar ou preferisse imaginar que sim. Anteros não o pressionou. Dava-lhe seus remédios, leva-lhe as refeições, penteava-lhe os cabelos e deixava que o silêncio entre eles fosse o terceiro convidado, um não muito querido, mas relativamente confortável. Pensava constantemente se era assim que Eros se sentia ao cuidar de si quando criança já que, mesmo depois de aprender a falar, não se mostrava entusiasmado em fazê-lo sem necessidade. O Destino era cheio de ironias. Confortava-se ao ouvi-lo conversando com Apolo quando este o visitava, coisa que ele fazia religiosamente duas vezes ao dia. E mesmo com todo o seu caráter exigente e superprotetor, não encontrou defeitos no cuidado dedicado que o deus do sol estava tendo com seu irmão. Seria-lhe irrevogavelmente grato por isso pelo resto da sua vida.

Entrou no quarto com passos suaves. Não era o seu quarto, o tinha alocado num logo ao lado. Embora quisesse se manter o mais próximo dele o possível e lhe dedicava todas as horas do dia, também evitava a todo custo parecer invasivo assim como também evitava qualquer movimento brusco, coisas que já não faziam parte da sua natureza. Aproximou-se dele devagar, mas em vez de se acomodar na cadeira ao lado, que já se encontrava ali com este propósito, Anteros se sentou na cama onde ele estava. Mesmo tendo-o feito com toda suavidade, aquilo ainda surpreendeu o deus do amor, que lhe dirigiu um olhar curioso, o máximo de interesse expressado nos últimos dias.

— Como está se sentindo? — perguntou no tom calmo e monocórdico que tinha.

Eros deu ombros, como quem diz não estar nem bem, nem mal, ou não se importar com o fato. Anteros se conformou em ainda ter dele apenas o silêncio, vagando com os olhos brevemente sobre a cama. Numa atitude rara e inesperada, mas ainda lenta e delicada, ele pegou uma das mãos do irmão e segurou entre as suas. Elas seriam idênticas se a pele dele não fosse tão clara e, ao contrário dos seus dedos frios, os dele eram cálidos e macios.

Eros arregalou os olhos, lhe ofertando além da curiosidade, uma surpresa genuína. Anteros não sabia se ele estava confortável com qualquer tipo de toque até aquele momento, mas ele não recuou da sua pele, então continuou com a palma dele entre as suas ao dizer:

— Mamãe está aqui para vê-lo.

O rosto dele mudou do espanto para a apreensão em segundos e ele abaixou as íris escuras, apertando os dedos nos seus.
Devolveu o aperto do mesmo modo que fizera no dia em que Ares surpreendera a ambos, como quem dizia que estava ali para ele naquela hora, assim como estava ali para ele agora. Isso lembrou-lhe que tinha-o abandonado quando ele realmente precisara, o que pareceu enfiar uma lâmina gelada no seu estômago e torcer algumas vezes. E isso apenas não transpareceu na sua face porque experimentava aquela mesma sensação várias vezes por dia desde do acontecido. Uma dor excruciante e inédita, mas já familiar, a qual aprendera a dissimular rapidamente. Não apenas porque não sabia lidar com ela, mas também porque achava que a sua dor não tinha espaço nem merecia atenção no momento.

BacanalOnde histórias criam vida. Descubra agora