Capítulo II - O Jardim do Inimigo

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Se o inimigo deixa uma porta aberta, precipitemo-nos por ela.

— Sun Tzu, "A Arte Da Guerra"

Três dias se passaram entre o bacanal e a mensagem. Apolo não pôde deixar de achar aquilo demasiadamente teatral. Quando Hermes apareceu fim da tarde, ele já sabia de onde vinha a missiva. Eros o estava convidando para a ceia, em um dos seus palácios.

"Por um segundo passo", o Amor escreveu, numa caligrafia irregular e desnecessariamente rebuscada. Digam o que quiserem do Cupido, mas ele conhece e tem grande apreço pela etiqueta. Se o primeiro movimento fora de Apolo, ao expressar seu desejo de concilio entre os dois, o segundo cabia a ele. Ele o fez. Bastante rápido... Porém, a prontidão do outro não desagradou o Sol, ele admitiu a si mesmo.

Estavam naquela época do ano em que Perséfone voltava para seu marido, Hades, e para o Submundo, causando o inverno no mundo mortal. O que significava que os dias eram mais curtos, e o seu tempo livre, maior. O que normalmente ele gastaria satisfeito compondo, tocando ou treinando a pontaria.

Não dessa vez.

Nos últimos três dias, atirar pareceu absurdamente enfadonho; tocar, maçante e melancólico; e compor... bem...

O deus da música com bloqueio criativo. Que as moiras me levem se houver algo mais ridículo! Apolo pensou sombriamente. Cômico. Tolo. Patético...

Auto depreciações à parte, as últimas 72 horas se mostraram de uma agonia constante. O deus estava ansioso, inquieto e desfocado. Nunca antes se distraíra com tamanha facilidade. A música, sua amante serena, se mostrava possessiva, sensível e havia se recusado a ele.

Nem quando Eros o machucou pela primeira vez e seu, até então, único amor se destruiu, o destruindo junto; nem quando pela segunda vez o Amor se vingou, e o menino dos seus olhos deixou a vida nos seus braços; nem quando o ciúme o tomou e ele feriu a irmã gêmea, que tanto amava, como havia sido ferido; nem assim os versos o haviam abandonado, nem na escuridão absoluta ele se sentira completamente sozinho.

Era no cume de sua tristeza que lhe nasciam as mais belas letras, as mais primorosas melodias, e as canções que duravam para sempre.

Por que agora? Ele se perguntava, inconformado, andando em círculos nervosos sobre o piso polido do seu quarto dourado. O que mudou? Era um questionamento inútil. Ele sabia a resposta. Recostou-se numa parede de mármore branco e suspiro, mórbido.

— Eu sempre soube que havia uma boa razão para evitar aquele menino... — Murmurou para si mesmo, mordendo a parte de dentro do lábio inferior.

A imagem do jovem deus moreno gemendo despudoramente, com os cabelos macios desarranjados e os olhos enormes fechados, surgiu sem convite na sua mente, fazendo-o apertar as mãos sobre o rosto de modo rude, como se pudesse expulsá-la com as unhas. Outra pergunta, muito mais coerente e perigosa, ecoou em sua cabeça:

Por que ele me afetou desta forma?

Apolo deixou os orbes azuis vagarem sem rumo certo pelo quarto. Viu a amada lira encostada com pouco cuidado numa poltrona estofada em azul celeste, o arco dourado sobre a aljava vazia de setas, uma pilha de pergaminhos riscados de tinta e embolados sem jeito numa escrivaninha de mogno claro, um vaso cheio de jacintos vermelhos precisando de água...

Ele não tinha resposta para a pergunta que verdadeiramente o perturbava. E, se existisse uma, duvidava que fosse gostar dela.

Foi nesse momento que Hermes chegou, trazendo um sorriso aberto. O deus mensageiro tinha um par de olhos âmbar inegavelmente astutos e cabelos curtos e encaracolados que eram leves que nem plumas, se movendo ao toque da menor brisa e insistindo em mudar constantemente de cor, agora num tom de azul suave como a aurora. Tinha um rosto comprido moldado por ossos angulosos, nariz longo e reto, uma boca escura e gestos rápidos e irrequietos. Sua presença imediatamente trouxe um pouco de ânimo ao irmão perturbado.

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