Capíluto XVI - Espólios

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Nada em mim foi covarde,
Nem mesmo as desistências:
Desistir, ainda que não pareça,
Foi meu grande gesto de coragem.

— Caio Fernando Abreu


O caos após o caos. Parecia estranhamente apropriado.

Depois dos tiros impossíveis de Eros, aquele gigante estava condenado e não demorou a desmoronar no chão olimpiano, os olhos vazados e sangrentos, coberto de furos. Ainda sim era uma visão melhor do que o que restou do monstro que fez a loucura de enfrentar Zeus e agora parecia um brinquedo de plástico retorcido por excesso de calor, exalando um odor horrível de carne queimada. Porém, por mais que aquilo pudesse causar ânsias em indivíduos com estômagos sensíveis, nada se comparava ou o preparava a para a visão do gigante de Dionísio.

Ele estava simplesmente destroçado.

A cabeça quase fora decepada do resto do corpo, ligando-se ao pescoço apenas por liga fina de pele, caída ao lado do monstro num ângulo bizarro. Era fácil perceber que faltava um pedaço enorme da garganta dele, sobrando apenas retalhos ensanguentados, feitos por dentes afiados. Mas não se via aquele bocado de carne em lugar algum, o que sugeria que talvez tivesse sido... engolido. Ele não tinha um dos braços a partir do cotovelo, apenas o osso do rádio despontando para fora. A barriga estava aberta, estripada por garras, e metros dos seus intestinos se espalhavam ao seu redor. Os calcanhares feitos em restos de ligamento sanguinolentos. Uma perna impossivelmente dobrada em três lugares diferentes...

Destroçado.

A verdade é que aquele chute não fora nem de longe o suficiente para parar o felino, e tirando a calda machucada e a construção demolida, fizera muito pouco estrago. Em Dionísio, no caso. Porque para o gigante, foi a sua sentença de morte, deixando um Baco com instintos assassinos completamente furioso e ele só largou a sua garganta quando conseguiu arrancar um pedaço dela.

Mas tinha acabado.

Os três monstros estavam no chão. A chuva tinha parado. Zeus alisava a barba acinzentada e impecável, totalmente incólume, os olhos cor de tempestade nos inimigos caídos. Apolo curava os três dedos quebrados de Atena e as suas próprias costelas trincadas por uma queda dura. Dionísio voltava a sua forma pequena e delicada.

— Ei! — ele gritou sem aviso, impossivelmente alto, chamando a atenção de todos no campo de batalha. Ainda estava completamente nu, a pele clara coberta de sangue preto e oleoso, terra e poeira. Os cabelos emolduravam selvagemente seu rosto, que ainda parecia ensandecidamente feroz e sombrio. — Está feito! O Tártaro caiu aos nossos pés hoje! — ele anunciou, um sorriso brilhando afiado contra a face suja. — A hora de lutar acabou. Está na hora de... — ele parou de repente, fazendo uma careta incomodada. Então passou a língua pelo céu da boca e cuspiu um punhado de sangue preto no chão, antes de continuar como se nada tivesse acontecido. — Está na hora celebrar a vitória!

Então pulou de cima do corpo do gigante morto e retalhado, de onde estava discursando calmamente, e começou a correr de volta para o Palácio do Vinho, parecendo feliz da vida. Saltitando e rebolando o bumbum empinado e fofinho.

Os três olimpianos olharam um para o outro.
Louco, louco, louco. Era o que todos pensavam, embora sobre perspectivas diferentes. Atena parecia chocada, no máximo que sua expressão racional e sóbria permitia. Zeus parecia achar graça. Hermes sempre seria o seu favorito, mas não negaria ter um olhar especial por aquele filho, talvez por ter sido pelo qual mais se esforçou para manter vivo. Além do mais, tinha de admitir: além de ter herdado a sua força e parte dos seus poderes, aquele menino era muito engraçado. Já Apolo... bem... Ele definitivamente está tentando me matar. Pensou, apertando os dentes, sem conseguir desviar o olhar daquelas nádegas branquinhas, como se elas contivessem o segredo da imortalidade. Do modo mais excitante possível...

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