Capítulo IX - Metafísica

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Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei a sombra dos teus gestos
Bebendo da tua boca o perfume dos teus sorrisos.

— Vinicius de Morais, "Ternura"


Aquele era o chá preferido dele. Maçã com canela. Era vermelho, bonito contra a xícara. Anteros preferia sabores frescos e cítricos aos doces: hortelã, gengibre, erva-cidreira, capim-limão... mas ele não. Ele gostava de camomila, erva-doce, amora e maçã. Nunca com açúcar mascavo ou branco, sempre com mel. Anteros achava quase enjoativo, mas era o que estava tomando ou, na verdade, deixando esfriar entre os seus dedos finos.

Não sabia porquê.

Você não sente nada, como pode sentir muito?

Anteros fechou os olhos quando a lembrança pinçou irracionalmente dolorosa dentro dele, uma dor quase física. Tinha estudado sobre dores fantasmas, quando se sente doer em membros que já não se tem mais, uma agonia presente e latente em uma parte que você não deveria sentir. Mas era o que ele sentia agora, uma dor profunda dentro do seu coração.

Você não sente nada, como pode sentir muito?

E como podia, de fato? Ele não era a pedra da família? Não era o bloco de gelo? Não era o filho apático e inexpressivo? A única ancoragem de lógica num mar de emoções esdrúxulas e perigosas? Era o único contrapeso racional. O que permanece firme e indiferente no meio do caos. O que nunca chora e nunca sorri. O Amor estava certo, ele era a Ordem e a Razão, não deveria sentir.

Mas ele sentia sim.

Não queria. Não devia. Não podia. Nunca fora capaz de admitir. Mas sentia. Sentia de um modo que o assustava, que o limitava, que contrariava a sua natureza, e que doía. Sentia quando estava com ele.

Sentia quando estava com Eros.

Por quê? Perguntou-se pela milésima vez, sentado na beirada da cama, vendo as pequenas partículas de fruta se acumulando no fundo do copo. Depois de tanto tempo, por que lembrar agora? Questionou, remexendo os dedos ao redor da xícara. Por que não apenas esquecer...

*

— Oito séculos atrás —

— Eu posso dormir com você hoje?

Anteros ergueu os olhos claros do pergaminho que lia calmamente, vendo Eros escorado no batente da sua porta, agarrado a um travesseiro fofo.

— Sabe quem sim. — respondeu apenas, voltando os olhos para as letras envelhecidas no papiro, sentando em frente a uma escrivaninha de madeira escura, um dos poucos móveis no seu quarto espartano.

Eros passou para dentro sorrindo, já ajeitando o travesseiro de estimação no lado esquerdo da cama estreita. Era algo comum. Cupido costumava fazê-lo dormir no seu quarto quando ainda era apenas um bebê. Depois, ao ter crescido um pouco, já não aceitando aquele mimo, o irmão acabava fugindo para sua cama, normalmente quando tinha pesadelos. Anteros já não se importava mais, sabia que o Cupido não conseguia dormir sem ele nessas noites, não suportava ficar sozinho.

O que fazia dos últimos meses uma exceção estranha. Já há várias semanas que irmão não se esgueirava pela sua porta, não compartilhava da sua vigília. Não tinha dado nenhum motivo para isso e Anteros também nada havia perguntado. O irmão era livre para fazer como lhe conviesse, afinal.

Pousou o pergaminho cuidadosamente sobre o móvel, finalizada a leitura, sentindo os olhos cansados. Virou-se no assento no momento de ver Eros se despindo da túnica fina que estava usando. Não era de costume grego dormir usando roupas de qualquer tipo e ele estava tão acostumado ao corpo de Eros como estava com o seu. Talvez até mais já que, a despeito das tradições, preferia ficar vestido, não gostava de expor a própria pele.

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