Capítulo V - Prece ao Deus da Ordem

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Então, você tem coragem?
Fico me perguntando se seu coração
Ainda está aberto
E se estiver, eu quero saber que horas ele fecha.
Se acalme e prepare seus lábios.
Sinto muito interromper,
É só que estou constantemente à beira
De tentar beijar você.
Eu não sei se você sente o mesmo que eu sinto,
Mas nós poderíamos estar juntos...
Se você quisesse.

— Arctic Monkeys, "Do I Wanna Know?


— Cara? — sugeriu Dionísio, inclinando a cabeça para lado esquerdo como um gato.

— Não! — exclamou. — Quem dizer, sim... Quer dizer, não! — Quanta eloquência, Apolo...— Ah... — Apertou o alto do nariz, fechando os olhos com força. — Me desculpe por isso. — murmurou, abrindo os globos azuis. — Eu pensei que fosse outra pessoa...

— Tadinha dela. — disse solidário, com todas as suas várias toneladas de sinceridade.

Apolo poderia cair morto de vergonha ali mesmo, no batente, e remoer seu constrangimento pelo resto do seu pós-vida. Sim, seria muito apropriado.

Ele não era um gigante como Ares ou Zeus e mesmo assim passava dos um e noventa de altura. Eros era uns bons dez centímetros mais baixo, mas ainda conseguia olhá-lo nos olhos. Já Dionísio, com suas belas formas de músculos suave e pele lisa, no que um mortal acharia dezoito ou dezenove anos, nem chegava ao seus ombros e Apolo o fitava de cima.

O rapaz lhe sorriu com inocência na beira da porta. Tinha dentes pequeninos e brilhantes, como um alinhamento de pérolas brancas. Os cabelos jaziam estranhamente soltos e Apolo levou alguns segundos para perceber que ele não usava a tradicional coroa de vinhas. Os cachos castanhos estavam num desordeno inédito, caindo uns por sobre os outros e sobre a face macia, pareciam eles mesmos cachos de parreira, feitos de cetim. Os seu corpo estava coberto por um chiton sem adornos, cor de tijolos de argila-vermelha, preso por alfinetes simples de cobre polido. E havia uma curiosa marca vermelha despontando na pele clara da sua garganta. Apolo nunca o vira tão modesto e desarranjado. E não possuía a mais ínfima ideia de como alguém podia ser tão belo com tão pouco.

Talvez seja até mesmo mais belo com menos ainda...

Dionísio piscou para ele um par de vezes, antes de deitar as íris escuras sobre a fresta da porta.

— Está ocupado? — perguntou.

Apolo quase arfou quando notou a própria descortesia.

— Não, não... — disse depressa, abrindo passagem. Não me desconcentre assim... — Entre, por favor.

Só quando mais jovem transpôs o vão da porta, passando por ele, percebeu seu erro terrível.
De repente, todos os seus ossos e músculos pesavam menos que uma folha sobre a tensão fina da superfície de um rio. Seu abdome tornou-se quente de dentro para fora. A noite mal dormida desapareceu tal qual poeira soprada pelo vento. Os ligamentos e tendões viraram bambu, flexível, sem pressão. E ele estava flutuando numa lagoa de vinho tinto dentro de uma clareira fechada. Nadando nela. Bebendo dela.

Morrendo nela.

— Espero que não se importe de eu ter trago...

— Floquinho... — Apolo completou, ao notar o felino cinzento esperando na porta, após ser parcialmente desperto pela voz cálida do menino da sua própria embriaguez languida e perigosa. — Pode entrar, garoto. — murmurou para o leopardo.

Floquinho olhou-o seriamente com as pupilas em forma de fenda e as íris cinza-azuladas, como gelo no mar. Então deu um par de passos elegantes e cautelosos para dentro, sem tirar a vista do anfitrião. De tão perto, Apolo notou uma cicatriz irregular e comprida na base do pescoço do felino, quase toda encoberta por seus pelos espessos. O deus da luz raramente agia com afetação e gestos de carinho público eram absolutamente estrangeiros a ele. Mas sentia-se estranho: leve, mole, manso. Por alguma razão, teve um impulso espontâneo e quase irrefreável de afeição pelo animal, e levou a mão ao alto da sua cabeça.

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