Capítulo XV - Irremediáveis

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Um idiota é escravo da sua raiva.
Um sábio faz da raiva sua ferramenta.

— Joe Abercrombie, "Meio Rei"

Ares estava para se levantar quando ouviu as asas batendo.

Afrodite tinha entrado há quase dez minutos, parecendo muito disposta a voltar todo chá que consumiam na varanda, para fora. Estava com sete meses de gestação agora e isso de vez em quando ainda acontecia. O deus da guerra, incrivelmente, nunca fizera uma única careta para sua barriga, mesmo sabendo que aquela cria não era sua. Não o levem a mal, o mortal que a fizera morreria com requintes de crueldade se um dia ele descobrisse seu nome. Mas, enquanto aquela criatura estivesse em Vênus, era parte dela. E Ares nunca torceria no nariz para ela. Já quando nascesse, aí era problema seu. Com sorte seria esperta o suficiente para ficar fora do seu caminho e isso era tudo. Ares custava a se importar com os próprios filhos, ia lá se preocupar com o filho dos outros?

Além do mais, ele já tinha se acostumado. Fidelidade não estava entre virtudes mais notáveis dos deuses da Emoção, ele mesmo tinha um punhado de bastardos aleatórios espalhados pelo mundo. Era tolice sofrer pelo irremediável.

E falando em irremediáveis...

Eros pousou na varanda com uma graça invejável, parecendo não pesar mais que uma única pena das suas asas brancas, que se recolheram fluida e elegantemente para dentro da pele alva das suas costas, nuas pela túnica. Tinha uma aljava alongada e muito bem feita presa ao corpo, dividida ao meio em duas cores distintas. Alocou ao seu lado o arco leve de platina e ia entrando com displicência no lugar, quando pareceu notar a sua áurea ambígua e violenta o rodeando.

— Pai! — ele exclamou, quase pulando de susto, baixando de imediato os olhos ao chão. — Perdoe-me, eu não o tinha visto.

Ares o fitou calado. Não o vira mais depois da Batalha Dos Três Gigantes, a imagem que lhe guardara era de uma pseudo-Afrodite toda descabelada e suja pela justa. Aquilo não lhe fazia justiça, concluíra agora. O garoto era ridiculamente bonito, chegava a ser ofensivo. Não que não soubesse disso, mas se esforçou muito para desprezar a informação. A beleza não o atingia, era apenas mais uma futilidade frágil e facilmente destruída. Mas não aquela. Aqueles cabelos, aqueles olhos, aquela pele, eram a única fragilidade que ele sempre teve o instinto de proteger.

— Mamãe está? — ele perguntou baixinho, parecendo perdido no meio do seu silêncio de olhos duros. Embora lutasse com sucesso para não recuar nem se encolher, mesmo que a sua áurea opressora e agressiva o exigisse, como um imã repelente que o empurrasse para longe. Mas ele permaneceu parado, sólido e firme a sua frente.

Teve um orgulho involuntário disso. Homens muito maiores e mais fortes fugiam e gaguejavam como pecadores no templo perto dele.

— Foi vomitar. — Ares respondeu simplesmente, com aquela voz áspera e grave.

— Oh... — ele murmurou, mais perdido ainda, parecendo não saber que atitude tomar em seguida. Arriscou subir-lhe os olhos negros e forçou-se a dignidade de encará-lo para dizer: — Acho que vou voltar depois e...

— Por que não usou, seu próprio arco?

Eros arregalou os olhos, piscando surpreso.

— Perdão? — sussurrou, não entendendo a pergunta.

Ares continuava displicentemente sentado atrás da mesa, ainda cheia de peças de chá e quitandas confeitadas que comia com a amante. A discrepância entre a delicadeza da comida e porcelana, com a brutalidade da sua presença era atordoante. O deus apoiou um cotovelo na madeira, fazendo Eros achar que ela ia ceder em pedaços no mesmo instante e apontou rudemente para a arma em suas mãos.

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