O balançar do comboio embalava até as mais inquietas almas adormecidas naquela carruagem. O sol tímido e caloroso adentrava-se pelas superfícies vítreas das janelas, derramando luz dourada na pele gelada dos passageiros. No canto mais isolado daquele vagão, ouvia-se uma pena mergulhada de tinta negra a rabiscar descompassadamente papéis cujo alfabeto não eram letras, mas sim, claves de sol, claves de fá, notas musicais, compassos e pausas silenciosas.
O olhar dele, exótico para aquele velho continente, cujo fazia as crianças como também algumas moças cochicharem, sem conseguirem parar de admirar ao longe, de lábios selados e tímidos, encarava confuso e perdido numa melodia que só na sua mente se escutava. Frustrado com a sua falta de inspiração naquela hora que aos poucos adormecia com a calma da paisagem nostálgica, deixou o seu corpo tenso repousar no assento e encostou a sua cabeça à superfície de madeira, soltando um longo suspiro.
Parece que as notas fogem de mim. Fechou os olhos, massajando a fonte com a ponta dos seus dedos, lentamente em círculos. Que raiva, o que eu vou fazer?
Retornou a observar a vista, esquecendo-se por momentos das partituras espalhadas no seu colo, saídas da sua pasta de couro negro, antigo e artesanal. A luz dourada do pôr do sol iluminava o seu olhar rasgado, oriental, cujas íris negras pareciam perdidas na floresta pela qual adentravam-se aos poucos, igual àquelas que eram o coração dos contos de fadas que os grandes adultos nos contavam quando ainda éramos ingénuas crianças.
Os tons quentes coloriam as folhas que esvoaçavam ao sabor do vento, que bailavam numa serena valsa, tal como o jovem músico havia imaginado naquele momento. Ao longe, dezenas de lagos calmos, dos mais diversos tamanhos e formas, espelhavam partículas alaranjadas cintilantes nas ondas pequenas e calmas, finalizando o quadro impressionista daquele lugar isolado do mundo.
Apenas cumprimentado por ele através daquele comboio, adormecido e perdido no tempo, cujas únicas pessoas que podiam apreciar aquela pintura mais desejavam sair daquele lugar, voltar para a civilização.
Passos firmes e compassados despertaram-no dos seus pensamentos filosóficos, das suas questões hipotéticas e das suas respostas que pareciam escapar dos seus lábios. Pararam ao seu lado, fazendo-o erguer a face em direção ao sujeito, que trajava um uniforme azul-marinho, com um emblema ferroviário de prata ao peito.
— Boa tarde, senhor. O seu bilhete?
— Oh.
Com isto, vasculhou rapidamente os bolsos do seu sobretudo negro, tapeando em busca da textura fina do papel.
— Aqui está. — Estendeu-lhe.
O seu olhar ansioso observou o semblante do revisor, que percorria as letras gravadas a tinta negra naquele pequeno pedaço de papel.
— Sonathea? — Encarou-o incrédulo. — Tem mesmo a certeza que quer ir para lá?
— Sim. — O seu sotaque asiático emanava nas suas palavras, nervoso com a pressão daquele sujeito. — Há algum problema?
O revisor espreitou em seu redor, discreto, verificando se mais alguém tinha prestado atenção àquela conversa. Depois, inclinou-se em direção a ele, fazendo-o notar os cabelos loiros da sua barba, as rugas de expressão que marcavam seu rosto, pesando mais as íris coloridas por laivos azúis translúcidos como a água, pelas quais o músico não se conseguia desviar, ansioso por recuperar a paz e o silêncio que lhe haviam roubado.
— O que sabe ao certo sobre esse lugar?
— É uma vila quieta e no meio do campo, ótimo para passar uma temporada longe de... — Encarou-o no fundo dos olhos, sublinhando as palavras com o seu tom de voz nobre. — Olhares inoportunos da civilização.
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A Pianista dos Corações Perdidos
FantasyMélodie, a pianista, cuja lenda conta que transforma suas vítimas em marionetes por onde passa, apenas com sua música, atraindo corações perdidos. Ludwig, um maestro e compositor preso num bloqueio artístico, foge de tudo e de todos até que, numa no...