Os olhos negros miraram em direção da voz, cruzando-se com o olhar avelanado que transbordava de surpresa. Ali estava Mélodie, à entrada da biblioteca, com a mão encostada à ombreira, numa posição que parecia estar a espreitar de uma forma hesitante.
Ao reconhecer a figura que segurava no livro de partituras, a sua postura tensa relaxou-se, desencostando-se da ombreira e entrando na sala, com as suas mãos entrelaçadas.
— Surpresa ver-te aqui, Ludwig.
Ele ficou por alguns segundos sem reação, apenas boquiaberto, até que caiu em si e fez uma pequena reverência em sinal de respeito, ainda com o livro aberto nas suas mãos.
— Boa noite, senhorita. — Com isto, abriu várias vezes os seus lábios, pensando no que iria dizer. — Surpreendo-me pela mesma razão, em relação a si.
A pianista deu um sorriso de lado, escapando um pequeno riso satírico.
— O que faz aqui? — Aproximou-se, encarando com o seu olhar gélido. — Não é qualquer um que pode estar nesta sala.
— Nomearam-me para ser o zelador dela, senhorita. — Fechou o livro, passando-o para a outra mão e deu um passo em direção a ela, com uma expressão calma e firme. — Apenas estou a conhecer o meu novo trabalho.
— Hm. — Observou-o, desconfiada. — Sabe ler partituras?
Desta vez, foi a vez do maestro sorrir de lado, charmoso.
— Está a fazer-me uma entrevista de emprego? — Deu mais um passo em frente, ficando cada vez mais próximo da pianista. — Não acredita que eu seja apto para o trabalho?
— Parece-me bastante confiante de que tem habilidade para tal. — Ela retribuiu o gesto, dando mais um passo. — Não devo considerar isso suspeito para um recém-chegado?
Um ténue sorriso desenhou-se na curva dos seus lábios, sentindo-se leve diante dela, como por momentos havia-se esquecido quem era ela, apenas entrando naquele jogo.
— Posso ter apenas um bom currículo, não acha?
Passou os dedos por entre os seus cabelos, com o seu olhar risonho que fez o coração da pianista falhar as batidas e perdendo a sua postura por poucos segundos. A sua imponência havia sido calada pela suavidade daqueles olhos rasgados que não mostravam medo, ao contrário de todos os outros que lhe rodeavam todos os dias, suplicantes apenas pela sua música.
A sua voz saiu num tom sereno e pensativo:
— Não está com medo de mim, Ludwig?
O olhar avelanado encarava-o no fundo dos seus olhos, reluzindo com o luar que iluminava lateralmente a sua face, transformando a sua figura numa pintura. Aquela visão fazia o coração de Ludwig pulsar fortemente para fora do seu peito e fazer os lábios dele tremerem apesar de se aparentarem seguros e confiantes com as palavras que proferia.
— De si? Não. Se fosse a rainha má que todos falam-me, já me teria aniquilado nas minhas costas.
Aquelas palavras fizeram o coração de Mélodie parar. Os seus olhos esbugalharam-se de surpresa, todas as suas palavras haviam fugido dos seus lábios e os seus muros gélidos terem-se desabado por breves momentos.
Ele deu um último passo. Os seus rostos estavam tão próximos, que a respiração de um afagava a face do outro. O silêncio era abafado pelo bater dos corações de ambos, que teimavam aumentar mais e mais, sem nenhum dos dois conseguir controlá-los.
Mélodie sentia-se contrariada com aquele descontrole de si mesma, mas não conseguia desviar o olhar daqueles olhos orientais que tanto lhe observavam de uma forma calma. Aquela empatia causava-lhe arrepios e um milhão de perguntas na sua cabeça sobre quem era aquele jovem que atrevera-se aproximar-se dela vezes sem conta, mesmo sabendo dos rumores e boatos do perigo que ele se submetia.
— Quem és tu, Ludwig?
— Eu? — A sua voz aveludada fazia o coração de Mélodie acelerar. — Eu sou apenas um jovem que vive da música, senhorita.
A pianista, tentando recompor a sua postura e retomar o controlo do seu coração, encarou-o de uma forma gélida, pousando a mão no peito esquerdo, sentindo a pulsação do coração do músico na superfície da palma da sua mão, que fortemente bateu, ao sentir a ponta dos dedos dela a pousarem sobre o tecido da sua camisa.
— Tenha cuidado com quem está a sua frente, Ludwig. Pois... Não se brinca com o fogo. — A sua voz era calma, mas ao mesmo tempo ameaçadora, fazendo-o acordar da sua paz, arrepiando-se da cabeça aos pés. — Este é o meu aviso, rapaz da música.
Com isto, retirou a mão do seu peito e afastou-se, graciosa como uma monarca, caminhando até à saída daquela sala. O som da porta a fechar-se soou num inquietante eco, sucedido por secas réplicas.
Ludwig estavam sem reação. Os seus olhos não se conseguiam desviar daquela porta que havia sido fechada, por ela. O único som que se ouvia naquela sala era do seu coração que galopava fortemente, sentindo ainda o calor que restara da mão dela. Um baque ouviu-se bater no chão, de um livro que aterrara aberto, a pouca distância dos seus pés.
As suas mãos tremelicavam levemente, ainda abalados pela forte emoção, pousando uma delas no seu peito e deixando o seu corpo encostar-se numa das estantes, tentando aos poucos processar a loucura que havia feito, a loucura de ter sido tão informal e tão relaxado diante dela, depois de todos aqueles avisos.
Porque estou a agir assim? Porquê? Passou a mão por entre os seus cabelos, nervosamente. Aish! Eu não sou assim! O que há de errado comigo quando estou com ela? Parece que meu cérebro para de funcionar.
Inclinou a cabeça para trás, fechando os olhos e suspirou fundo. Sentia o seu corpo a arder de calor e o suor que havia acumulado na palma da sua mão. No entanto, a sua mente parecia perdido nas novas memórias daquele momento, recordando-se dos breves momentos em que aqueles olhos avelanados não eram gélidos nem ameaçadores, mas apenas calmos e serenos, quando espreitava hesitante à porta daquela sala.
Numa voz profunda e pensativa, sussurrou para si mesmo:
— Quem serás realmente tu, Mélodie?
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A Pianista dos Corações Perdidos
FantasyMélodie, a pianista, cuja lenda conta que transforma suas vítimas em marionetes por onde passa, apenas com sua música, atraindo corações perdidos. Ludwig, um maestro e compositor preso num bloqueio artístico, foge de tudo e de todos até que, numa no...