Capítulo XIII

5 1 0
                                    

Ludwig nunca se havia revirado tanto numa cama como havia naquele final de madrugada. A sua mente borbulhava de memórias, pensamentos e interrogações.

Relembrava-se dos rostos dos Corações Perdidos, da sua convicção em rebelar-se contra a pianista e, sobretudo, das palavras docemente proferidas pela voz de Melódie: Tenha cuidado com quem está a sua frente, Ludwig. Pois... Não se brinca com o fogo.

Sem conseguir silenciar a sua intuição que teimava em dizer que havia algo ali que lhe estava a escapar, sentou-se e passou ao ponta dos seus dedos por entre os seus cabelos negros, enquanto tentava organizar os seus pensamentos, sussurrando para si mesmo num ténue fôlego:

— Há algo que não está certo...

Mas, ao aperceber-se o vácuo das respostas que tinha à sua suposição, suspirou fundo, encostando a cabeça à cabeceira da cama, com os olhos fechados.

— Mas, não sei onde começar a procurar...

Com isto, olhou para a janela, apercebendo-se dos tons vermelhos quentes que aos poucos invadiam o horizonte, anunciando a fugidia e tímida luz do dia que iria iluminar numa breve visita. Então, decidiu sair da cama, pé ante pé, sem acordar os gémeos que estavam pesadamente a dormir.

Vestiu os seus elegantes trajes, abotoando a sua camisa e ajeitou os seus cabelos. Finalmente, saiu do sótão e desceu as escadas, caminhando até ao salão que praticamente estava vazio, ainda fechado ao público.

Os olhos negros encararam as majestosas portas trancadas, com um pensamento que sem querer saiu numa pergunta:

— Me pergunto quem serão os aristocratas que então por aqui todos os dias...

— Ninguém o sabe. — Uma voz calma surgiu por trás dele.

— Perdão?

Ele virou-se em direção da voz, pousando o olhar numa jovem mulher, cujo rosto era emoldurado por penas de ave que adornavam as suas orelhas. Tinha traços indígenas, com cabelos longos e negros, nariz reto e pele morena escura. Trajava um vestido longo e dourado com padrões indígenas e tinha um colar de ouro cujo pingente era uma borboleta. Os seus olhos castanhos-escuros olhavam-no, serenos e misteriosos.

— Nenhum Coração Perdido o sabe. — Deu mais um passo, sussurrando as últimas palavras. — Apenas a Madame Edelgard sabe de tal coisa, sendo ela a senhora deste lugar.

— Oh... — Ele assentiu levemente o rosto, assimilando as palavras, com os olhos fixos no chão, até que, retornou a erguê-los, encarando-a. — Perdoe-me, mas quem é...?

— Quem sou eu? — Um sorriso gentil desenhou-se nos seus lábios. — Chamo-me Apanii, sou a dama de companhia da Madame.

— Bonito nome, diferente de todos os que já ouvi.

Ela pousou a mão no seu pingente:

— Significa borboleta na minha língua. Siksika.

A sua expressão mostrava curiosidade, repetindo novamente o nome:

— Siksika?

Um pequeno riso saiu dos seus lábios, delicado.

— Sou de uma terra distante, para lá dos vossos mares. — Com isto, observou-o. — É novo aqui.

— Realmente sou. — Deu um sorriso educado. — Lamento pela minha falta de cortesia, sou o Moon Ludwig, mas, pode tratar-me por Ludwig.

— Prazer. — Com isto, ela fez um rápido pedido a um dos empregados, retornando depois a focar-se no maestro. — Creio que ainda é tudo novo para si, isto tudo...

— Quando dou por mim, o meu inconsciente ainda torce para que tudo seja apenas um sonho profundo. — Apoiou o seu corpo ao balcão. — Também és um Coração Perdido?

Houve um pequeno silêncio entre ambos. Os olhos castanhos analisavam-no, cautelosos apesar de calmos, atentos ao rumo que aos poucos a conversa prosseguia. Até que do seu rosto sério surgiu um sorriso:

— Sim, a primeira de todos vocês.

Ludwig ficou boquiaberto.

— És a primeira?...

— Parece surreal, mas é a verdade.

— Mas... — Os olhos dele estavam esbugalhados. — A lenda da Pianista, pelo que eu sei, tem pelo menos séculos.

Apanii olhou em redor, verificando se estavam sozinhos. Com isto, aproximou-se, cuidadosa em manter-se discreta, sussurrando-lhe:

— O conceito de tempo como o conhecemos não se aplica neste mundo.

— Como?

— Exatamente como ouviu. — À medida que falava, gesticulava com as suas mãos. — Cá, não existe passado, nem presente, nem futuro. É como se estivéssemos congelados no tempo. Se eu retornasse, eu teria na mesma apenas dezanove anos.

— Sendo que a lenda existe há séculos...

— Há 250 anos, segundo os sussurros que ninguém quer que os Corações Perdidos oiçam.

250 anos...

— Mas... Como é que...

Ela sorriu-lhe, apercebendo-se do choque que reluziam nos olhos asiáticos.

— Ao contrário do que maior parte pensa, Ludwig, viver aqui não é assim tão mau. É um começar do zero, sem qualquer vestígio do passado que nos atormentava. Eu comecei uma nova vida aqui, neste mundo. — Ela tinha a mente perdida nas palavras que pensava em dizer. — Claro que tenho saudades de casa, de estar na natureza, perto do rio, estar com os animais, ouvir a melodia do vento a soprar na minha face ao final da tarde, mas... Não há uma saída deste lugar, não há uma alternativa, apenas podemos escolher recomeçar de novo, nesta caixa de música. Entendes?

Ele assentiu levemente o rosto.

— Entendo.

Apanii sorriu. Logo de seguida, um empregado aproximou-se de ambos, por trás do balcão, entregando uma bandeja que continha um generoso pequeno-almoço, digno de uma senhora da nobreza.

— Bem, a Madame espera-me. — Ergueu a bandeja, com um olhar doce para Ludwig. — Pensa naquilo que te disse, não vale a pena renegares o que aconteceu, apenas seguir em frente e conhecer o que este mundo tem a te oferecer, assim como eu fiz.

— Tentarei, senhorita.

Ela acenou-lhe o rosto, despedindo-se:

— Até a um dia destes, Ludwig.

— Igualmente, Apanii. 

A Pianista dos Corações PerdidosOnde histórias criam vida. Descubra agora