Capítulo XIX

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A luz melancólica da noite irrompia pelas altas janelas da sala de partituras. Tudo estava num silêncio inquebrável e ensurdecedor, como se mais ninguém existisse naquele mundo, apenas Ludwig, que vagueava pelos corredores, perdido nos seus pensamentos, à medida que verificava o inventário daquela sala e limpava o pó dos livros.

A sua mente não parava de pensar na conversa daquela noite. Haviam-se passado já três dias, e nada mais havia acontecido além de vê-la nas atuações noturnas no salão. Por vezes, os seus olhares cruzavam-se por breves segundos, na vénia final, mas, antes que pudesse reagir, a pianista desaparecia na escuridão do corredor do labirinto.

Um suspiro saiu dos seus lábios, tentando retomar o foco nos livros. Mas, a sua mente sempre voltava aos olhos avelanados que transbordavam de melancolia e tristeza. E, as palavras dela sempre rondavam os seus ouvidos, acompanhados pela melodia do piano.

Viver sob o pensamento que não podemos almejar por nada melhor, pela nossa liberdade e pelo sonho não é a mesma coisa que... Estarmos mortos por dentro?

Ele encostou as suas costas a uma das estantes de livros e fechou os olhos, mergulhado nas interrogações retóricas que bombardeavam a sua cabeça. E então, outras palavras dela vinham-lhe à memória, aguçando cada vez mais a sua curiosidade.

Não sei... Já lá vai tanto tempo...

Um outro suspiro, ainda mais profundo, saiu da sua boca, ao mesmo tempo que passava com a ponta dos seus dedos nos cabelos negros, pensando, pensando e pensando.

— Quem és tu, Mélodie?... — Olhou fixamente para o teto. — Como vieste aqui parar?

Abanando a cabeça, tentou colocar as ideias longe da sua mente e voltou a focar-se no trabalho. Retirava os livros de uma determinada prateleira, limpava o pó e retornava a colocar os livros, às vezes dando uma espreitadela no interior das páginas, curioso por compositores, músicos, partituras e melodias que nunca tinha ouvido falar. Por vezes, de coração quente, pensava do quão maravilhoso o seu mestre e os seus pais achariam daquele lugar, virando ratinhos da biblioteca musical como ele. Repetia este processo vezes sem conta naquele dia, às vezes parando para observar a vista noturna sarapintadas de estrelas e pincelada pelas cores da via láctea. Parecia uma obra de arte aos olhos do maestro.

Quando retornou para limpar mais uma prateleira, no fundo do infindável corredor de estantes, algo chamou à atenção do seu olhar.

Era um livro em capa dura, castanha com textura de couro, gravada em relevo o nome Moon Ludwig na lombada. Os olhos rasgados esbugalharam-se e os seus dedos correram para pegar naquele livro. O seu coração batia forte no peito à medida que percorria as páginas de partituras, todas compostas por si.

Memórias irrompiam a sua mente como estrelas cadentes. A sua primeira vez a ser apresentado à corte, quando conduziu pela primeira vez uma orquestra num grande anfiteatro, os aplausos após sua primeira sonata, tantas outras lembranças que faziam o seu coração ficar afogado numa melancólica nostalgia ao luar.

Até que, algo fez ainda esbugalhar mais os seus olhos.

Era a primeira música que alguma vez tinha escrito na vida, de quando ainda era criança. Sem palavras, o seu corpo colapsou de emoções. Deslizou as suas costas pela estante e deixou-se cair no chão, ficando sentado no soalho de madeira, com o corpo encostado às prateleiras e livros. A sua mente estava em branco, todas as palavras haviam fugido de si naquele momento.

As pontas dos seus longos dedos sublinhavam as notas musicais ao longo da pauta, à medida que memórias bombardeavam a sua cabeça de sensações felizes, nostálgicas, fazendo-o mergulhar num mar de saudade e de melancolia da sua infância que há muito havia escapado de si como as palavras. Parecia que tudo aquilo tinha acontecido num outro milénio, num tempo que aos seus olhos lhe parecia surreal e intocável, como se nunca tivesse sido uma realidade. Mas ali estava, uma relíquia da sua longuíqua infância, passada em Joseon, com a sua família, quando ainda era feliz ao escrever músicas e correr para mostrar aos seus pais e amigos o que havia composto.

A Pianista dos Corações PerdidosOnde histórias criam vida. Descubra agora