— Como aquele descarado se atreve?!
A voz dela ecoava por todo aquele lugar, acompanhado pelos passos furiosos que ressoavam no soalho de madeira num compasso apressado.
— Como se atreve?!
Os seus olhos transbordavam fortes emoções, intensos e ferinos. Deambulava sem rumo aos círculos, numa pequena sala toda envidraçada, dava a impressão que a noite mergulhava naquela divisão, escura como o breu, tendo vista para a galáxia que ocupava todo o céu, sarapintado de estrelas e de cores.
— Bem, como ele não há muitos. — Uma feminina voz surgiu por trás dela, mais calma e mansa. — Há que admitir.
— Tu juras, Lynx? — respondeu, irónica, olhando para a felina. — Que raiva! Ele já não se apercebeu que ninguém se aproxima de mim por alguma razão?
— Nenhuma totalmente e verdadeiramente válida, se queres que te diga, Mélodie.
A pianista baixou o rosto, fitando-a, com um olhar intenso, sentindo a fúria a dominar o seu corpo.
Esvoaçou bruscamente com a ponta dos seus dedos o tecido do seu vestido e caminhou até à janela, cujo sua figura estava refletida na superfície vítrea, com uma expressão gélida.
— Eu odeio pessoas.
— Não me parece. — A felina observava-a ao longe. — Não após teres atraído este cavalheiro ao nosso mundo.
— Só fiz o meu trabalho. Apesar de eu claramente já me arrepender deste coração em específico... — Cruzou os braços, pensativa. — Porque tinha de ser ele? Porque ele tinha de aparecer agora...
Lynx olhou-a desconfiada.
— O que disseste?
— Nada, Lynx. Absolutamente nada. — Rodou o rosto em direção da voz, encarando-a. — Porque ele não poderia simplesmente ser como os outros tolos e acreditar nas assombrosas lendas? — Retornou a olhar para a janela. — Que dor de cabeça.
Ainda desconfiada, mas não querendo pressionar a pianista, esperou no silêncio que as melhores palavras viessem à mente. Aos poucos, a melancolia daquela figura vestida de negro entristecia o coração da felina, encarando os olhos da pianista que tão bem conhecia os seus medos e mágoas. Com aquelas memórias na sua mente, deu um suspiro, cabisbaixa, e retornou a olhar para Mélodie, com uma calma voz:
— Não ficas nem um pouco em paz por haver uma única alma que não acredite em toda esta ilusão?
Ela caminhou até à pianista, demonstrando compaixão nos seus olhos dourados. Mélodie olhou-lhe, com uma certa mágoa transbordando nas suas íris avelanadas.
— Não, nem um pouco. E sabes porquê? Porque não faz minimamente a diferença. — Com isto, ela mergulhou o olhar no seu reflexo. — Afinal de contas, ele é uma pessoa, como outra qualquer. E as pessoas... Sempre nos desiludem.
— Mélodie...
Antes que ela pudesse continuar, a pianista ergueu a mão:
— Preciso de um tempo sozinha, por favor... Lynx.
Recompôs a sua postura, retornando à sua expressão gélida. A lince, ao dar-se por vencida naquela conversa, deu um longo suspiro e abanou a cabeça, desconcertada, e saiu silenciosamente daquela sala.
A solidão rodeou a pianista como numa profunda e invisível névoa, isolando-a de tudo e de todos. Os seus olhos estavam perdidos na noite, e, pousou a mão direita no seu peito esquerdo, amarfanhando o tecido com a sua mão. Sentia uma batalha de emoções a ocorrer no seu corpo, que não conseguia controlar. A sua mente mirava pequenas reminiscências dos olhos rasgados encarando os dela, de uma forma que ninguém antes a havia olhado. Aquele olhar a descontrolava no seu íntimo, fazendo-a sentir-se furiosa pela sua incapacidade de controlar o seu mero coração, quando conseguia atrair tantos outros através da ponta dos seus dedos.
— Tenho que arranjar uma solução... — Encarou o seu coração, tendo uma explosão de emoções tão intensas nos seus olhos. — Antes que seja tarde demais.
Recompôs a sua postura, retornando à sua personagem majestosamente gélida e fitou nos seus olhos refletidos na superfície vítrea, ferinos e ameaçadores:
— Tenho um certo coração para despedaçar.
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A Pianista dos Corações Perdidos
FantasyMélodie, a pianista, cuja lenda conta que transforma suas vítimas em marionetes por onde passa, apenas com sua música, atraindo corações perdidos. Ludwig, um maestro e compositor preso num bloqueio artístico, foge de tudo e de todos até que, numa no...