PARTE 5- O braço quebrado de Ralf.

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      O único momento em que ele se via tendo pesadelos era o de vinte anos atrás. Os cabelos de Ralf agora voavam sobre o rosto e seus dedos posicionados na arma eram nada mais do que membros minúsculos e ossudos. A pele negra manchada de fuligem e os olhos quase fechados na direção dos prédios.
       Ralf Neilborn era policial há sete anos. Treinado no exército, passou a possuir vínculo com o sistema militar desde muito cedo. Seu pai, Alfred Neilborn, tinha um amigo chamado Emett Conroy. Emett trabalhou por trinta anos na força militar de Nexvoy, no Canadá. Passou por diversos treinamentos que o consagraram tenente de batalha no verão de 2056. Medalhas de ouro e prata enfeitavam a parede dos fundos de uma sala na casa de Emett.
"Você deve aprender a manusear uma arma, garoto."  Dizia ele, como se estivesse determinado a criar um combatente.
"Não é só puxar o gatilho, senhor?" Perguntara Ralf, inocente demais para ter que lidar com todas aquelas explicações sucintas de uso de arma de fogo.
"Arma é mais do que só apertar o gatilho, garoto." Falou o homem.
       Ralf treinou por duas semanas até saber atirar em um monte de feno no quintal de Emett. Lá havia um caseiro chamado Franklin. Ralf também não gostava de lembrar da imagem do tal Franklin.
"Volta pro asfalto e se camufla, negrinho!" Dizia ele. "Estou louco pra fazer uma carne à brasa. Não tenho carvão. A não ser que você queira se tostar um pouco não é, negrinho? "
      Franklin era um homem de trinta e poucos anos com a pele pálida e os cabelos castanhos. Ralf tinha que ouvir todas essas grosserias do caseiro quando treinava sozinho no quintal aberto. Emett nunca soube que o tal caseiro era um Filho da puta preconceituoso e racista. Pensou Ralf.
       Anos depois ainda pensava sobre aquilo. De Franklin sendo devorado internamente pelo vírus, se é que ele ainda fosse vivo. Desviou os pensamentos de Emett quando pensou que ele poderia ter morrido da mesma forma. Ele era um bom homem. Pensou Ralf. Não merecia ter morrido assim.
      Mas Ralf se conformara. Na época em que as chuvas varriam campos de plantações e deixavam lagos cheios para os fazendeiros, Alfred Neilborn ficava irritado. Nunca teve bom humor, porém o que tinha de mal humor piorava nessa época. De algum modo a umidade trazia insetos para sua plantação. Todas as folhas vermelhas eram destruídas. E Alfred descontava sua frustração em Ralf.
      Uma vez, quando Ralf estava fazendo a lição de casa e a chuva havia parado há uma hora, Alfred subiu a escada com o cinto na mão. Ralf não soube, mas o pai o tomou pelo colarinho e distribuiu cintadas loucamente. Ralf sentia suas costas arderem com a sequência de surras.
"Eu mandei que você colocasse as folhas vermelhas para dentro, cuzão!" Dizia Alfred, batendo ainda mais forte. "Seu verme! Assim vou ter prejuízo! Seu imbecil!" Insistia em dizer o Sr. Neilborn.
      Mas Ralf nunca ouvira o pai mandar fazer aquilo. Ele lembrava que o pai sempre o batia por ele passar na frente da TV enquanto ele assistia ao jogo dos BESNE'S ou quando derrubava alguma coisa barulhenta sem querer enquanto Alfred se concentrava em analisar papéis de contas. A sra. Neilborn passava mais tempo no trabalho do que em casa. Em compensação o tempo em casa servia para ela dormir ou brigar com Ralf por não ter feito isso ou aquilo.
     Nesse dia Alfred retirou a camiseta surrada de Ralf e continuou com as cintadas. Ardiam três vezes mais. Vergões apareciam na pele negra do garoto enquanto ele gritava. O pai o segurou pelo braço e continuou a surrá-lo com o cinto. Dezessete, dezoito, dezenove...
    Ele segurava com força o braço do garoto com uma das mãos e com a outra o cinto. Clac. Ralf deu um grito ainda mais alto. Nesse momento Alfred o largou.
"Isso é pra você aprender a não ser um imbecil, verme!"
     O braço de Ralf quebrou. O osso do ombro tinha se partido em duas partes. Ele não gostava de lembrar desse dia. Mas os pesadelos não se podiam controlar.
Agora está tudo bem. Disse Ralf para si mesmo. Ele está enterrado agora. Não acontecerá de novo.
       Outro policial chegou ao lado de Ralf. A grade do enorme portão atrás deles. Os prédios protegidos cheios de isolados. Ou zumbis. Tanto importava para Ralf.
Esses vermes uma hora vão escapar daí. Disse Ralf para o amigo. E percebeu que falava igual ao pai.

Nova Z - O mundo isolado.Onde histórias criam vida. Descubra agora