PARTE 22- O campo elétrico

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      Ralf estava ao lado do armário, os braços em volta dos joelhos, sentado ao chão e com os olhos indo de um lado a outro. A respiração estava pesada, porém neutralizada. O suor descia-lhe pela nuca e os dedos dos pés se contorciam no tênis. Estava com muito medo. Medo era sim uma palavra definitiva para a situação.
- Ralf, venha aqui! - dizia o pai, com o cinto apertado entre os dedos da mão. - Quer o seu presente de aniversário, verme? Quer? Apareça e o receba! Vamos! Não custa nada... - ele alisava o couro do cinto com a outra mão e se ouvia pequenos risos intercalados num âmbito de psicopatia descontrolada. - Eu não tenho dinheiro, como eu disse! Mas não há presente melhor que esse! Vamos, verme, apareça! Contarei até três, como na brincadeira do Afonso... - (Afonso e a garotada era um programa matinal do canal nove que Ralf adorava assistir. Afonso contava até três para que seus quatro sobrinhos se escondessem em árvores e arbustos. Ralf sempre via que o que os analistas infantis o consideravam um programa saudável para as crianças, seu pai achava não mais do que uma boiolice. "Desliga isso, seu frutinha!" Gritava do quintal. "Vou enfiar meu cinto na boca desse boiola também! " dizia também, se referindo a Afonso na TV. - Vamos garoto! Apareça! Minha mão não pode coçar. Se coçar você...
      Ralf pulou de trás do armário e saiu em disparada pela porta. Usava uma camiseta regata branca com calça azul. Ele viu que as pernas do pai estavam separadas uma da outra e tentou passar entre elas engatinhando o mais rápido que pudesse. Mas o pai o agarrou pela bainha da calça.
- Vem cá, verminho! - ironizou o pai. - Não quer ganhar o presente de aniversário que pediu a sua mãe mais cedo? Que tal esse, heim? - Ele ergueu a mão e mostrou o cinto. - Eu acho perfeito para você!
     O homem começou a dar golpes de cinto no pobre garoto, segurando-o pelo tornozelo. Ralf se debatia no chão da cozinha.
- Não! Para, pai! Para! Não! - Ralf chorava, mas não muito alto. Sabia que se gritasse muito alto o pai enfiaria um pano em sua boca e daria o dobro de cintadas.
     Ralf chorava e sua cabeça doía horrores. Assim como sua pele depois da sessão de surras.
      O homem cuspira nele depois da última cintada. E Ralf lembra que o homem começou enrolar o cinto na outra mão para distribuir mais, porém desistiu. O garoto levantou em seguida com pontadas no estômago e lágrimas rolando na face. Olhou no espelhinho da cozinha e tocou os lábios. Estava sangrando muito.

                            ***
       Espelho. Outro espelho. Mas agora no quarto no submarino. Quase vinte anos depois daquele episódio da surra.
"Eu tinha olhado para o reflexo de uma criança machucada e pedindo socorro." Pensou ele. "Mas agora olho para o futuro dessa mesma criança. Evoluída. Sem medo. Sem gritos. Sem sangue."
      Ralf se distanciou do espelho e deitou na cama. Apagou a luz da luminária e fechou os olhos. Mais uma noite. Tentou não pensar muito no dia de amanhã. Só se aconchegou no travesseiro e deixou-se ser levado pelo grande túnel do sono.
       Pela manhã,  Rodrick tinha acordado mais cedo (bem mais cedo) que Ralf. À porta estava Ebay conversando com Tony, o comandante do grupo de resgate e namorado dela.
- Pensei que não acordaria hoje! Não esperei. - disse Rodrick, mastigando um pedaço de pêssego. - Vamos. Eu te acompanho numa segunda viagem.
      Ralf levantou, se vestiu e saiu com Rodrick pelo corredor logo após Ebay e Tony se dirigirem por um corredor próximo.
- Vem, preciso te mostrar uma coisa! - Rodrick levou Ralf pelo corredor que ligava um túnel a um salão com prateleiras de aço.
- Viu mais alguma coisa? - perguntou. - Depois de termos visto Laure ontem, duvido que...
- É exatamente sobre isso que eu quero mostrar. - afirmou Rodrick, passando com o amigo por uma dúzia de pessoas que vinham pela direita rindo e com livros nas mãos. Também com roupas alaranjadas. - Por aqui. Venha.
     Chegaram a uma sessão com um número na parede: 17. Mais abaixo Ralf notou que havia teclas em um aparelho.
- Não podemos passar. Não sabemos a...
     E antes que Ralf terminasse seu comentário a porta de vidro se abriu. Rodrick tinha acabado de apertar as teclas corretas.
- Como fez isso? - perguntou Ralf, com as sobrancelhas erguidas.
- Acabei criando amizades além de você por aqui nas horas extras, meu amigo. - Rodrick sorriu e eles continuaram a trajetória. O corredor estava vazio, mas nem um pouco seguro de andar livremente. - É aqui. - disse Rodrick, chegando a uma área com os mesmos tipos de sala que o homem com rabo de cavalo e barba falava com Inseto e Arfey.
      Ralf se inclinou e ficou de frente ao vidro para olhar para a sala com nitidez.
- É ela. - confirmou Ralf, vendo a sra. Benson de costas e roupas laranjas no meio da sala. Trancafiada e sozinha. Mas sem correntes. - O que ela está fazendo?
     Laure Benson esticava os braços e tocava o ar com os dedos. Rindo sozinha. Parecia admirada com o teto. Olhava para o lustre simples nele e ria, tapando a boca e batendo palmas aqui e ali.
- Ela enlouqueceu. - disse Rodrick. - Está totalmente pirada e estranha. Estava chutando e arranhando as paredes quando vim aqui no início da manhã.
       Algum som irritou-a do lado de fora e Laure Benson mirou Ralf e Rodrick. Seus olhos ainda estavam vermelhos.
- Ela nos viu. - disse Ralf. - Isso é bom ou ruim?
- Talvez seja péssimo. - respondeu Rodrick.
     Laure Benson se agachou e encarou-os como uma leoa. Como um bicho selvagem. Ela riu e um segundo depois estava séria. Correu e tentou pular sobre o vidro, mas um metro antes de chegar até ele, uma campo elétrico em forma de parede a impediu. Jogando-a de volta ao meio da sala. Ela se contorceu de dor, engatinhou até um dos cantos da sala e gemeu igual a um cãozinho com medo.
- O que aconteceu? - espantou-se Ralf, afastado pelo susto.
- Peguem-nos! - uma voz veio de trás e Ralf e Rodrick reconheceram ser a voz de Ebay.
     Antes que algum deles tivesse que erguer as mãos e ter a chance de explicar qualquer coisa, os dois guardas que acompanhavam Ebay dispararam.
       Um dos tiros acertou Ralf no peito. O outro Rodrick no meio do abdome. Eles se contorceram ao cair no chão. Sentiram uma leve sonolência.
       Ouviram o som dos sapatos de Ebay se aproximar deles. "Toc, toc, toc...". Então ela os olhou com reprovação:
- Vocês exterminadores são bem mais difíceis de lidar! - disse ela, com frieza. - Mas não tolerarei que me desobedeçam.
       Ralf via agora duas imagens de Ebay e foi adormecendo aos poucos. No final tinha aceitado a morte. E então ouviu uma última coisa da mulher:
- Levem-nos daqui.

Nova Z - O mundo isolado.Onde histórias criam vida. Descubra agora