capítulo 4

19 0 0
                                    


Na cobertura de um hotel de luxo em Florença, havia roupas jogadas por
toda a sala de estar, descrevendo uma trilha, como se fossem migalhas de
pão, da entrada até uma parede que não estava mais vazia. Gemidos e
ritmos indiscretos ecoavam no ar, flutuando por sobre elegantes sapatos
masculinos feitos à mão, um sutiã preto, um terno sob medida largado
sobre a mesa de centro, um vestido de tafetá que formava no chão uma
poça azul Santorini...
Se um detetive examinasse a cena, daria pela falta da calcinha e dos
sapatos da mulher.
O ar estava repleto dos aromas de flor de laranjeira e Aramis,
misturados ao cheiro almiscarado de suor. O quarto estava escuro. Nem
mesmo o luar que vinha do terraço alcançava a parede onde dois corpos
nus se agarravam. O homem estava com as costas eretas e segurava no
colo a mulher, que envolvia os quadris dele com as pernas.
– Abra os olhos.
O pedido de Gabriel foi entrecortado por uma cacofonia de sons: pele
deslizando contra pele, gemidos desesperados abafados por lábios, breves
sorvos de oxigênio e o leve baque das costas de Julia na parede.
Ela conseguia ouvi-lo gemer a cada investida, mas sua capacidade de
falar tinha se perdido, concentrada numa só sensação: prazer. Cada
movimento do seu amante lhe dava prazer, até mesmo o atrito entre seus
peitos e a sensação das mãos dele a sustentando. Ela oscilava à beira do
êxtase, ofegante, à espera de que o próximo movimento a fizesse cair.
Quase lá, quase, quase, quase...
– Você... está... bem? – Gabriel estava ofegante e sua última palavra
soou como um gemido, quando Julia girou os tornozelos de leve,
pressionando os saltos afiados na carne dele.
Julia jogou a cabeça para trás e soltou alguns sons incoerentes ao
chegar ao orgasmo, ondas intensas irradiando de onde eles estavam
conectados e disparando por seus nervos, até que todo o seu corpo
estivesse vibrando. Gabriel sentiu, é claro, e gozou logo em seguida; duas
investidas profundas e ele gritou seu nome com a boca no pescoço de Julia,
tremendo dos pés à cabeça.
– Você me deixou preocupado – sussurrou ele pouco depois.
Estava deitado de costas no centro de uma cama grande e branca,
enquanto sua amante sonolenta se enroscava ao seu lado, a cabeça dela descansando sobre sua tatuagem.
– Por quê?
– Você não abria os olhos. Não falava nada. Fiquei com medo de ter sido
bruto demais.
Ela correu os dedos pela barriga de Gabriel até alguns pelos que desciam
a partir do seu umbigo, percorrendo-os preguiçosamente, sentindo sua
textura.
– Você não me machucou. Foi diferente desta vez... mais intenso. A
cada vez que você se movia, uma sensação incrível atravessava o meu
corpo. Eu não conseguia abrir os olhos.
Gabriel sorriu para si mesmo, aliviado, e pressionou os lábios na testa
dela.
– Esta posição é mais profunda. E ainda houve as preliminares no
museu. Não consegui tirar as mãos de você durante o jantar.
– Só porque sabia que eu tinha perdido minha calcinha.
– Não. Foi porque desejo você. Sempre. – Ele abriu um meio sorriso.
– Com você, cada vez é melhor do que a anterior – sussurrou ela.
O rosto de Gabriel ficou melancólico.
– Mas você nunca diz meu nome.
– Digo seu nome o tempo todo. Fico surpresa que ainda não tenha me
pedido que use um apelido carinhoso, como Gabe, Dante ou professor.
– Não é disso que estou falando. O que quero dizer é que você nunca diz
meu nome... quando goza.
Ela ergueu o queixo para ver o rosto dele. Sua expressão combinava com
seu tom de voz, melancólica e momentaneamente vulnerável. A máscara de
confiança havia caído.
– Para mim, seu nome é sinônimo de orgasmo. Vou passar a chamá-los
de Emgasmos.
Ele riu alto, uma gargalhada gostosa, que fez seu peito chacoalhar e
obrigou Julia a se sentar na cama. Ela riu também, grata por seu momento
de melancolia ter passado.
– Você tem um senso de humor muito peculiar, Srta. Mitchell.
Ele se esticou para beijá-la uma última vez antes de relaxar nos
travesseiros e adormecer.
Julia ficou acordada por mais algum tempo, refletindo sobre o garotinho
ansioso e inseguro que se revelava raras vezes e nos momentos mais
inesperados.
Na manhã seguinte, Gabriel presenteou Julia com seu café da manhã
predileto no Caffé Perseo, uma excelente gelateria na Piazza della Signoria.
Eles ficaram do lado de dentro, pois a temperatura típica de dezembro
havia voltado e o tempo estava chuvoso e frio.
Qualquer um poderia ficar sentado na praça o dia inteiro, todos os dias,
e observar o mundo passar. Ela é cercada de edifício antigos – a Galleria
degli Uffizi ficava bem na esquina. Há uma fonte impressionante e belas
esculturas, que incluem uma reprodução do Davi de Michelangelo e uma
estátua de Perseu segurando a cabeça decepada da Medusa em frente a
uma linda loggia.
Julia evitou olhar para Perseu enquanto tomava seu gelato. Gabriel evitou
olhar para as legiões de florentinas lindas para observar sua amada. Com
voracidade.
– Tem certeza de que não quer provar? Framboesa e limão combinam
muito bem. – Ela estendeu uma colher em que os dois sabores se
misturavam.
– Ah, eu quero provar, sim. Mas não isso. – Os olhos dele brilharam. –
Prefiro algo um pouco mais exótico. – Ele colocou seu espresso de lado e
pegou a mão dela. – Obrigado por ontem à noite e por hoje de manhã.
– Eu que lhe agradeço, professor. – Julia apertou a mão dele e se ocupou
do seu café da manhã, por assim dizer. – Estou surpresa que meu corpo
não tenha deixado uma marca na parede do nosso quarto. – Ela deu uma
risadinha, estendendo-lhe uma pequena colherada de sorvete.
Gabriel permitiu que ela lhe desse de comer e, quando a língua dele
despontou para lamber os lábios, Julia ficou zonza. Uma enxurrada de
imagens daquela mesma manhã invadiu sua mente. E uma em especial
ficou gravada nela.
Ó deuses dos namorados que são deuses do sexo e gostam de dar
prazer às suas amantes, obrigada pela manhã de hoje.
Ela engoliu em seco.
– Foi a primeira vez, sabia?
– Prometo que não vai ser a última.
Gabriel tornou a lamber os lábios só para provocá-la, louco para fazê-la se contorcer.
Ela se inclinou para a frente, no intuito de dar um beijinho em seu rosto.
Mas ele não quis saber disso. Deslizou uma de suas mãos até a nuca de
Julia e a puxou para perto.
Sua boca estava doce por conta do sorvete e do gosto próprio de Julia.
Ele gemeu quando a soltou, desejando poder levá-la de volta ao hotel para
repetirem o que haviam feito na noite anterior, ou talvez para o museu...
– Posso lhe perguntar uma coisa? – Julia se ocupou de seu pote de
sorvete para não ter que encará-lo.
– Claro.
– Por que disse que eu era sua noiva?
– Fidanzata tem vários significados.
– Mas o principal deles é noiva.
– Ragazza não expressa a profundidade do que sinto por você.
Gabriel moveu os dedos dentro dos seus novos e apertados sapatos. A
boca dele se contorceu enquanto ele pensava no que dizer em seguida, se é
que deveria dizer mais alguma coisa. Decidiu ficar calado, remexendo-se
em sua cadeira, sentindo-se desconfortável.
Julia percebeu o que julgou ser um desconforto físico.
– Desculpe-me pelos saltos.
– Como?
– Vi as marcas na sua bunda quando você estava se vestindo hoje de
manhã. Não quis machucá-lo.
Ele sorriu com malícia.
– É um risco que correm os obcecados por saltos altos. Carrego minhas
cicatrizes amorosas com orgulho.
– Vou ser mais cuidadosa da próxima vez.
– Nem pensar.
Julia arregalou os olhos diante do repentino lampejo de paixão na
expressão dele.
Ele capturou os lábios dela com os seus antes de sussurrar no ouvido de
Julia:
– Vou lhe comprar um par de botas com saltos ainda mais altos, então verei o que você consegue fazer com elas.
Enquanto eles atravessavam a Ponte Vecchio debaixo de um só guarda-
chuva, Gabriel a arrastou de loja em loja, tentando convencê-la a aceitar
algum presente ou uma joia extravagante: reproduções etruscas, moedas
romanas, colares de ouro, etc. Mas ela se limitava a sorrir e recusar as
ofertas, apontando para os brincos de diamantes de Grace e dizendo que
eles eram mais do que suficientes. A falta de apego a coisas materiais que
Julia demonstrava só fazia com que Gabriel tivesse mais vontade de
empilhá-las a seus pés.
Quando chegaram ao meio da ponte, Julia puxou-o pelo braço e o
conduziu até à beirada para que pudessem observar o rio Arno.
– Tem uma coisa que eu gostaria que você me desse, Gabriel.
Ele a encarou com um olhar intrigado, o ar frio de Florença ruborizando
as faces de Julia. Ela era a encarnação da bondade, da luz, da ternura e da
doçura. Mas era extremamente teimosa.
– Diga.
Julia fez uma pausa para correr a mão pela barreira que a separava do
parapeito da ponte.
– Quero tirar minha cicatriz.
Ele ficou quase surpreso. Sabia que ela sentia vergonha da marca da
mordida de Simon. Gabriel a havia surpreendido aplicando o corretivo
naquela manhã e os olhos dela ficaram marejados quando ele lhe perguntou
o que era aquilo.
Ela evitou encará-lo e prosseguiu:
– Não gosto de olhar para ela. Não gosto do fato de você ter que olhar
para ela. Quero que desapareça.
– Encontraremos um bom cirurgião plástico na Filadélfia, quando formos
passar o Natal em casa.
– Teremos tão pouco tempo com eles. Não poderia fazer isso com o
meu pai. Nem com Rachel.
Gabriel trocou o guarda-chuva de mão e a puxou para um abraço. Ele a
beijou, descendo os lábios pelo seu pescoço até tocar a cicatriz.
– Será um prazer fazer isso por você e muito mais. Só precisa pedir.
Mas gostaria que fizesse algo por mim.
– O quê?
– Gostaria que conversasse com alguém. Sobre o que aconteceu.
Julia baixou os olhos.
– Eu converso com você.
– Estou falando de alguém que não seja um cretino. Posso pagar um
médico para remover a cicatriz da sua pele, mas ninguém pode remover as
marcas de dentro de você. É importante que perceba isso. Não quero que se
decepcione.
– Não vou me decepcionar. E pare de chamar a si mesmo desse tipo de
coisa. Isso me aborrece.
Ele assentiu, como se admitisse que Julia tinha razão quanto ao último
ponto.
– Acho que poderia ajudar se você tivesse alguém com quem
conversar... sobre tudo. Tom, sua mãe, ele e eu. – Gabriel lançou-lhe um
olhar angustiado. – Sei que sou uma pessoa difícil. Acho que, se você
tivesse alguém com quem conversar, seria bom.
Ela fechou os olhos.
– Está bem, mas só se você concordar em fazer a mesma coisa.
Ele ficou tenso.
Ela abriu os olhos e começou a falar depressa:
– Sei que você não quer e, acredite, eu entendo. Mas, se vou fazer isso,
você também tem que fazer. Você ficou muito irritado ontem à noite e,
embora saiba que não estava com raiva de mim, fui eu que tive que
aguentar as consequências.
– Tentei recompensá-la depois – disse ele, cerrando os dentes.
Ela ergueu a mão para acariciar seu maxilar retesado.
– É claro. Mas me incomodou que você tenha ficado tão transtornado por
conta de uma cantada de um estranho. E que tenha achado que o sexo
aliviaria sua raiva e me marcaria como sua.
O rosto de Gabriel ficou chocado, pois ele nunca tinha interpretado sua
atitude dessa forma.
– Eu jamais machucaria você. – Ele apertou sua mão.
– Eu sei.
Gabriel pareceu angustiado e o pânico em seus olhos não diminuiu
quando Julia ergueu a mão para acariciar seus cabelos.
– Somos uma dupla e tanto, não? Com nossas cicatrizes, nossas
histórias e todos os nossos problemas. Um romance trágico, imagino. – Ela
sorriu, tentando fazer graça da situação deles.
– A única tragédia seria perder você – disse ele, beijando-a de leve.
– Você só vai me perder se deixar de me amar.
– Então sou um homem de sorte, pois ficarei com você para sempre.
Ele tornou a beijá-la, tomando-a nos braços.
– Fui obrigado a fazer terapia durante a reabilitação. Continuei me
consultando com um terapeuta por mais ou menos um ano depois disso,
além de frequentar reuniões de autoajuda semanais. Já passei por isso
antes.
Julia franziu a testa.
– Você está em recuperação e não vai às reuniões. Eu não quis tocar
nesse assunto, mas é um problema sério. Além do mais, você ainda bebe.
– Eu era viciado em cocaína, não alcoólatra.
Ela perscrutou os olhos dele. Era como se tivesse descoberto um velho
mapa medieval que traçava os limites do mundo com as palavras Aqui há
dragões.
– Nós dois sabemos que os Narcóticos Anônimos sugerem
enfaticamente que viciados não bebam. – Ela suspirou. – Por mais que eu
tente ajudar, algumas coisas estão fora do meu alcance. Por mais que
goste de fazer sexo com você, não quero me tornar sua nova droga
favorita. Não posso consertar as coisas.
– É isso que você acha? Que eu uso o sexo para consertar as coisas?
Sua pergunta era séria e Julia resistiu ao impulso de responder com
sarcasmo.
– Acho que já usou o sexo para consertar as coisas, sim. Você mesmo
já admitiu isso, lembra? Que usava sexo para combater sua solidão. Ou se
punir.
Uma sombra cruzou o semblante de Gabriel.
– Não é assim com você.
– Mas, quando uma pessoa fica perturbada, antigos padrões de
comportamento vêm à tona. Isso também se aplica a mim, só que meus
mecanismos de defesa são diferentes. – Ela o beijou com carinho, mas por
tempo suficiente para que seu pânico diminuísse e ele retribuísse o beijo.
Quando suas bocas se desgrudaram, eles continuaram abraçados até
Julia decidir quebrar o silêncio:
– A sua palestra ontem à noite me fez lembrar de uma coisa. – Ela
sacou seu telefone da bolsa e passou rapidamente por uma série de fotos.
– Aqui.
Gabriel pegou o telefone da mão dela e olhou para a bela pintura. Santa
Francisca Romana ninava um bebê com a ajuda da Virgem Maria, enquanto
um anjo observava a cena.
– É linda – disse ele, entregando-lhe o telefone.
– Gabriel – falou ela com brandura –, olhe para o quadro.
Ele obedeceu. E foi invadido por uma sensação muito estranha.
Ela começou a falar em voz baixa:
– Eu sempre adorei esta pintura. Achava que era por causa das
semelhanças entre Gentileschi e Caravaggio. Porém é mais do que isso.
Santa Francisca perdeu alguns de seus filhos para a praga. A pintura busca
retratar uma de suas visões do que aconteceu com essas crianças.
Julia vasculhou os olhos de Gabriel para ver se ele havia entendido o que
ela queria dizer. Mas ele não entendera.
– Quando olho para esta imagem, penso na sua filha, Maia. Grace a está
segurando, cercada de anjos. – Julia apontou para as figuras no quadro. –
Está vendo? O bebê está em segurança e é amado. O Paraíso é assim.
Você não precisa se preocupar.
Julia ergueu os olhos para o rosto dele, angustiado e belo. Os olhos de
Gabriel estavam cheios de lágrimas.
– Sinto muito. Muito mesmo. Estava tentando consolar você. – Ela
passou seus braços em volta do pescoço dele, apertando-o com força.
Algum tempo depois, ele enxugou os olhos. Escondeu o rosto em seus
cabelos, sentindo-se grato e aliviado.
Na tarde seguinte, a chuva parou. Então o casal pegou um táxi até a
Piazzale Michelangelo, que oferecia uma vista panorâmica da cidade. Eles
poderiam ter pegado um ônibus turístico, como turistas normais, mas
Gabriel não era exatamente normal.
(Poucos especialistas em Dante são.)
– O que Rachel dizia no e-mail? – perguntou Gabriel enquanto eles
admiravam o telhado ladrilhado do Duomo.
Julia brincou com suas próprias unhas.
– Ela e Aaron mandaram um abraço. Queriam saber se estávamos
felizes.
Gabriel estreitou os olhos.
– Só isso?
– Hum... não.
– E?
Ela deu de ombros.
– Parece que Scott está namorando. Basicamente foi isso.
– Bom para Scott. – Ele deu uma risadinha. – Mais alguma coisa?
– Por que está perguntando?
Ele inclinou a cabeça de lado.
– Porque percebo quando você está escondendo alguma coisa.
Ele começou a correr os dedos para cima e para baixo pela carne macia
da cintura de Julia, um lugar em que ela sentia mais cócegas do que o
normal.
– Você não vai fazer isso em público.
– Ah, vou sim. – Ele sorriu e começou a mover os dedos com
determinação, fazendo cócegas.
Ela começou a rir e tentou se desvencilhar dele, mas Gabriel a segurou
com firmeza.
– Vamos, Julianne. Conte o que Rachel falou.
– Pare de fazer cócegas – falou ela, ofegante – que eu conto.
Gabriel parou de mover as mãos.
Ela respirou fundo.
– Ela queria saber se nós já tínhamos... hum... dormido juntos.
– Ah, é? – Os lábios dele se curvaram em um meio sorriso. – E o que
você disse?
– A verdade.
Ele a encarou.
– Mais alguma coisa?
– Ela disse que esperava que você estivesse se comportando e que eu
estivesse feliz. E eu respondi que sim, para as duas coisas. – Ela esperou
alguns instantes, pensando se deveria ou não mencionar o e-mail de um
certo fazendeiro de Vermont.
– Mas não foi só isso. Continue. – Ele ainda tinha um sorriso indulgente
estampado no rosto.
– Bem, Paul me mandou um e-mail.
O sorriso de Gabriel sumiu.
– O quê? Quando?
– No dia da sua palestra.
– E por que não me contou antes? – perguntou ele, furioso.
– Por isso. – Ela gesticulou para a óbvia irritação em seu rosto. – Sabia
que você ficaria irritado, e não queria fazer isso quando você estava
prestes a se apresentar diante de um salão cheio de pessoas importantes.
– O que ele dizia?
– Que você aprovou a proposta de tese de Christa.
– O que mais?
– Ele me desejou um Feliz Natal e disse que enviaria um presente para o
meu endereço de Selinsgrove.
As narinas de Gabriel se dilataram.
– Por que ele faria isso?
– Porque é meu amigo. Deve ser uma garrafa de xarope de bordo, que
ficarei feliz em dar para o meu pai. Paul sabe que eu tenho namorado e que
estou muito, muito feliz. Posso encaminhar o e-mail para você, se quiser.
– Não precisa. – Os lábios de Gabriel se crisparam numa linha fina.
Julia cruzou os braços diante do peito.
– Você me deu o maior apoio para passar tempo com Paul quando a
professora Agonia estava por perto.
– Aquilo foi diferente. E não tenho a menor intenção de voltar a falar
sobre ela, nunca mais.
– Para você é fácil. Não fica topando o tempo todo com homens que me
levaram para a cama.
Gabriel a fuzilou com o olhar.
Julia cobriu a boca com a mão.
– Desculpe. Não deveria ter dito isso. Foi horrível.
– Como deve se lembrar, já topei com pelo menos um homem com
quem você esteve envolvida.
Ele lhe deu as costas e se afastou, aproximando-se do parapeito do
mirante. Julia o deixou sozinho por alguns minutos, então parou a seu lado e
encaixou com cuidado seu dedo mindinho entre os dele.
– Desculpe.
Ele não respondeu.
– Obrigada por me salvar de Simon.
Gabriel fez uma careta.
– Você sabe que eu tenho um passado. Pretende ficar trazendo-o à tona?
Ela baixou os olhos para os próprios sapatos.
– Não.
– Aquele comentário estava abaixo do seu nível.
– Desculpe.
Gabriel manteve seu olhar fixo na cidade que se estendia diante deles.
Telhados vermelhos brilhavam sob o sol, enquanto o domo de Brunelleschi
dominava a paisagem.
Julia decidiu mudar de assunto:
– Christa estava estranha na sua última aula. Parecia ressentida. Você
acha que ela sabe sobre nós dois?
– Ela está azeda porque não recebi com bons olhos suas investidas
escandalosas. Mas cumpriu o prazo de entrega de sua proposta revisada e o
trabalho estava aceitável.
– Então ela não... chantageou você?
– Não vejo todas as outras mulheres como rivais suas – retrucou ele,
perdendo a paciência e afastando a mão de Julia.
Os olhos dela se arregalaram de surpresa.
– Esse comentário está abaixo do seu nível.
Depois de alguns instantes, a raiva de Gabriel pareceu diminuir. Ele
encurvou os ombros.
– Me perdoe.
– Não vamos perder nosso tempo brigando.
– Concordo. Mas não gosto da ideia de Paul ficar lhe mandando e-mails.
Embora imagine que você poderia ser amiga de gente pior. – Gabriel soou
mais afetado do que o normal.
Ela sorriu e lhe deu um beijo no rosto.
– Este é o professor Emerson que eu conheço e amo.
Ele pegou o telefone para tirar uma foto dela com aquela linda vista ao
fundo. Julia estava rindo. Ele tirava uma foto atrás da outra quando seu
telefone começou a tocar. O som não muito melodioso das badaladas do
Big Ben ressoou entre eles.
Julia o encarou com um olhar de desafio.
Ele fez uma careta e a puxou para um beijo intenso. Então aninhou o
rosto dela em sua mão, determinado a separar os lábios de Julia com os
seus e enfiar a língua com carinho em sua boca.
Ela retribuiu o beijo, envolvendo a cintura dele com os braços para puxá-
lo mais para perto. E, durante todo esse tempo, o Big Ben não parava de
repicar.
– Não vai atender? – ela enfim teve a chance de perguntar.
– Não. Já disse que não vou falar com ela.
Ele tornou a pressionar os lábios nos de Julia, mas apenas por alguns
instantes.
– Tenho pena dela – declarou Julia.
– Por quê?
– Porque ela concebeu uma filha com você. Porque ela ainda o deseja,
mas o perdeu. Se eu perdesse você para outra pessoa, ficaria arrasada.
Gabriel bufou, impaciente.
– Você não vai me perder. Pare com isso.
Julia abriu um sorriso fraco.
– Hum, preciso lhe dizer uma coisa.
Ele recuou.
– Quero que saiba que só vou falar isto porque me preocupo com você.
– Ela o encarou com uma expressão séria. – Tenho pena de Paulina, mas é óbvio que ela está jogando nas suas costas todo o peso do que aconteceu
para que você continue fazendo parte da vida dela. Chego a me perguntar
se ela não arranja problemas só para que você vá salvá-la. Acho que está
na hora de ela desenvolver um apego emocional por outra pessoa. Alguém
por quem possa se apaixonar.
– Não discordo – respondeu ele, tenso.
– E se ela não conseguir ser feliz até se libertar de você? Você se
libertou dela e me encontrou. Seria misericordioso da sua parte permitir que
Paulina se liberte também, para que possa encontrar a felicidade.
Gabriel assentiu, taciturno, e beijou a testa dela, mas se recusou a
continuar falando daquele assunto.
O restante da estadia do casal em Florença foi feliz, uma espécie de lua
de mel. Eles visitavam diversas igrejas e museus durante o dia,
entremeando com passadas no hotel, onde faziam amor, algumas vezes
devagar, outras loucamente. Todas as noites Gabriel escolhia um
restaurante diferente para o jantar e, em seguida, eles voltavam a pé,
parando em alguma das pontes para namorar como dois adolescentes em
meio ao ar frio da noite.
Na última noite deles em Florença, Gabriel levou Julia ao Caffé Concerto,
um de seus restaurantes favoritos, que ficava às margens do rio Arno. Eles
passaram horas saboreando um jantar de vários pratos, conversando
preguiçosamente sobre as férias e sobre o relacionamento sexual que
surgia entre os dois. Ambos confessaram que a semana anterior tinha sido
uma espécie de despertar – para Julia, um despertar para os mistérios de
eros; para Gabriel, um despertar para os mistérios do entrelaçamento dos
quatro amores.
Durante a conversa, ele revelou que tinha uma surpresa para ela. Havia
alugado uma vila na Úmbria para a segunda semana de férias deles.
Prometeu levá-la a Veneza e a Roma na próxima viagem, possivelmente no
verão, depois que visitassem Oxford.
Após o jantar, Gabriel a levou uma última vez ao Duomo.
– Preciso beijá-la – sussurrou ele, puxando o corpo dela para junto do
seu.
Ela iria responder, iria lhe dizer para levá-la ao hotel e marcar seu corpo
de uma forma mais profunda, mas foi interrompida.
– Moça bonita! Não tem um dinheirinho para um velho? – chamou uma
voz, vinda dos degraus de entrada do Duomo.
Sem pensar, Julia se inclinou em volta de Gabriel para descobrir quem
estava falando. O homem continuou, implorando por dinheiro para comprar
algo de comer.
Gabriel agarrou o seu braço antes que ela pudesse se aproximar dos
degraus.
– Vamos embora, amor.
– Mas ele está com fome. E está fazendo tanto frio!
– A polícia vai aparecer para levá-lo embora. Eles não gostam de
pedintes no centro da cidade.
– As pessoas são livres para se sentarem nos degraus de uma igreja. É
um santuário... – refletiu ela.
– O conceito medieval de santuário não existe mais. Os governos
ocidentais o aboliram, a começar pela Inglaterra no século XVII –
resmungou Gabriel enquanto ela abria sua bolsa e sacava uma nota de 20
euros.
– Tanto assim? – disse ele, fechando a cara.
– É tudo o que tenho. E olhe, Gabriel. – Ela gesticulou para as muletas do
homem.
– Muito engenhoso – reclamou ele.
Julia lançou um olhar desapontado para seu amante.
– Eu sei o que é passar fome. – Ela deu um passo na direção do
mendigo, mas Gabriel a puxou de volta.
– Ele vai gastar o dinheiro em bebida ou drogas. Isso não vai ajudá-lo.
– Até um viciado merece um pouco de gentileza.
Gabriel se encolheu.
Ela olhou para o pedinte.
– São Francisco de Assis era incondicional em sua caridade. Ele dava a
qualquer um que pedisse.
Gabriel revirou os olhos. Era incapaz de vencer uma discussão com
Julianne quando ela invocava São Francisco de Assis. Seria impossível para
qualquer um rebater um argumento desses.
– Se eu lhe der algo, ele vai saber que alguém se importa o suficiente
para ajudá-lo. Não interessa se vai fazer algo de bom com o dinheiro ou
não. Não me prive de uma oportunidade de ser caridosa.
Ela tentou passar por Gabriel, mas ele bloqueou seu caminho. Tirou a
nota da mão dela e acrescentou algo do próprio bolso, então entregou o
dinheiro para o mendigo.
Os dois trocaram algumas palavras inaudíveis em italiano, então o pobre
homem jogou beijos para Julia e tentou em vão apertar a mão de Gabriel.
Gabriel voltou, tomando o braço dela e levando-a para longe dali.
– O que ele disse?
– Para eu agradecer ao anjo pela sua misericórdia.
Julia o fez parar e beijou seu rosto emburrado até ele sorrir.
– Obrigada.
– Não sou o anjo de que ele estava falando – rosnou ele, beijando-a de
volta.

julgamento de Gabriel Onde histórias criam vida. Descubra agora