Capítulo XIV

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 O desejo de ser seu era poderoso, me dominou por completo em pouco tempo. Fui levado pelo fluir de um grande rio de águas inquietas. Michael era uma pessoa maravilhosa, me fazia esquecer que no mundo poderia haver pessoas malignas, com intuitos de pura maldade. Nunca pensei que pela primeira vez em minha vida eu estava me sentindo seguro. Uma vida de medo, uma vida me escondendo de pessoas que machucam sem motivo racional. Dizem que o medo é o instinto de sobrevivência, talvez seja mesmo. Em busca de um lugar eu fugi de todos, apenas procurei uma saída que me trouxesse ao menos segurança.

Não há nada pior do quê viver cercado dentro de sua própria casa, uma família com um preconceito enraizado, que me obrigou a me esconder como forma de manter o meu bem-estar. Sempre doeu ser a pessoa diferente, ser a pessoa que precisava a todo tempo negar, da qual faziam piadas na escola. Não que eu estivesse livre desse mal, já que os preconceitos são os mesmos, apenas o que mudam são as pessoas. Liberdade é para quem pode ser livre, e os que podem ser livres estão presos a convicções e dogmas tão antigos quanto a idade da terra.

O mundo muda, as pessoas mudam também e o que continua é a maldade que precisa ser justificada por algo, religião, política, alguns nem sequer justificam, apenas desafiam qualquer pessoa contrária às suas crenças. O ódio cresce nos corações daqueles que fecham suas mentes, olhos e ouvidos. Conservar o não conservável tornou-se a bandeira dos homens de ódio.

— Você está bem? — Michael questiona-me, fazendo com que eu retorne à realidade e saía de minhas profundas e questionadoras reflexões acerca do mundo e da sociedade. Nunca fui uma pessoa de falar e sim de pensar. Pensava em como fugir de tudo que estava me causando tanto medo e angústia. Na adolescência comecei a desenhar, gostei, era mais fácil idealizar o mundo a partir de um papel em branco. Ao menos os lápis-de-cor não poderia estragar tudo sozinhos. Eu poderia controlar e construir meu mundo como eu queria.

— Só estou pensando em algumas coisas —

— Sobre a proposta que te fiz? — Ele estava na sua pia com uma faca em mãos cortando os legumes para fazer o almoço. Era tão incrível como seu semblante estava completamente irreconhecível. Antes tão obscuro e misterioso agora sorria frequentemente, seu olhar transmitia paz e não mais a angústia.

— Na verdade sobre outras coisas. Do meu passado —

— A pior parte da vida é o passado, você tenta esquecer por causa dos traumas, mas não pode por conta das lembranças —

— Seria tão mais fácil viver apenas pelo hoje e pelo amanhã. E por nós mesmos —

— O que atormenta? —

— Problemas. Acho que no fundo minha situação familiar não é muito diferente da sua, no final das contas estou sozinho, já que da família sou aquele que traz o desgosto —

— Por que você saiu do México? —

— Eu apenas queria fugir de todo mundo, morar em uma cidade pequena e extremamente católica era um inferno. Não que aqui seja um paraíso, mas pelo menos aqui as pessoas ao pouco poderiam esquecer de mim e eu poderia começar uma nova vida. Eu fujo como um criminoso, pois eles me veem como um, me tratam como um, minha própria família —

— Espero que se sinta bem —

— Bem, na verdade eu me sinto livre, não totalmente livre, mas ao menos posso ser quem seu sou —

— E quem é você? —

— Eu sou Miguel Montenegro, 19 anos, gay, mexicano, latino-americano, amo desenhar, minha cor favorita é o amarelo, gosto de passar minhas tardes de folga ouvindo música e desenhando. Quero amar sem medo, quero ser eu sem precisar me esconder —

Ele vem até mim, com as mãos erguidas para não me sujar com o suco da beterraba, curva seu corpo afrente, até onde eu estava sentado e beija minha cabeça.

— Você não deveria se esconder do mundo, você é uma pessoa incrível, não é justo. Tantas pessoas ruins no mundo e elas não precisam ocultar quem são —

— Elas podem ser quem são, eu até posso, mas sempre com muito medo e insegurança —

Passamos boa parte da tarde conversando, nunca pensei que uma conversa poderia fluir tão bem em uma mesa de almoço. Ele me fazia rir, me fazia ficar triste com sua história de vida. Por ele eu conseguia sentir todos os sentimentos possíveis.

Dizem que uma paixão nada pode fazer a uma pessoa com o coração partido, era tão difícil acreditar nisso vendo-o bem daquela forma. Não sei o que pode nos ocorrer se ficarmos juntos, não sei como estaremos, mas prefiro acreditar que se eu me permitir amar pela primeira vez tudo vai ficar bem.

Estar apaixonado era algo extremamente excitante, era como se uma injeção de ânimo houvesse sido injetada em minhas veias, minha vontade de viver a vida loucamente nunca esteve tão alta como naqueles dias com ele. Fiquei pensando se não teria sido mais fácil ter o conhecido bem antes, logo quando aqui cheguei, minha adaptação foi tão difícil, fiquei alguns dias em um lugar apertado cheio de pessoas assim como eu imigrantes ilegais, dei sorte de logo conseguir um emprego, entretanto nem tudo estava resolvido ainda.

— Então sua família vivia aqui nessa casa? —

— Sim, meus pais compraram logo depois de se casarem, meu irmão morou aqui com sua esposa e seu filho até que todos partiram —

— Deve ser difícil viver em um lugar que te traz tantas memórias —

— Nem tudo tem apenas um lado, não é mesmo? —

— É verdade — Depois do almoço Michael me deu carona até o meu trabalho, ele ficou um pouco receoso em me deixar trabalhar, já que segundo ele eu precisava repousar mais um pouco, mas eu tinha que trabalhar, eu tinha que resolver a minha vida. Depois de um beijo no seu carro ele se foi, entrei no supermercado e comecei a trabalhar normalmente. Era sempre a mesma coisa, arrumando as prateleiras, limpando o chão e os banheiros, nada muito especial, nem muito pesado.

Amor além das fronteirasOnde histórias criam vida. Descubra agora