UM CAP DA FREEN
Segunda-Feira.
Quando estou com medo, eu conto minhas memórias. Mamãe me ensinou isso quando eu ainda era criança, ela segurou meus dedos e tocou a ponta do meu mindinho, do meu anelar e o do meio enquanto contava até três. Ela me disse que cada dedo deveria ser uma memória feliz de nossa família.
Eu era o mindinho com minha memória de comer pizza de calabresa todas as sextas no restaurante do meu pai, mamãe era o anelar que me trazia a lembrança dela cortando minha franja na frente do espelho e o meu pai era o dedo maior, invadindo minha mente com a imagem dele me levando em sua bicicleta pelo parque quando eu ainda era minúscula. Então quando eu estivesse com medo, eu contaria até três tocando cada um dos meus dedos e lembraria da gente, e isso me ajudaria a ficar bem. E o mais surpreendente era que fazer isso realmente me acalmava.
Quando meu pai morreu, eu parei de colocar ele na contagem. Não sei por que isso aconteceu. Acho que meu pai morto me lembrava que minha mãe ficou doente por conta disso, e essa coisa toda não me amparava em nada. Então quando estava nervosa ou inquieta com o que quer que fosse, eu contava até dois.
Eu e minha mãe, sempre eu e ela.
Agora esse número aumentou e atualmente vai até cinco. Minha mãe, eu, Rebecca, Irin e Noey. Elas viraram a minha família. Isso costumava funcionar, mesmo que ás vezes eu precisasse contar muito, muito mesmo, até tudo ficar bem de novo.
Quando chegava a cada número, algumas lembranças boas submergiam meu cérebro. O um ainda é a imagem da minha mãe aparando a minha franja na frente do espelho, sempre sorrindo e ameaçando cortar ela inteira só para me assustar (essa é bem antiga, faz muito tempo desde a última vez que ela me olhou daquele jeito risonho); o dois agora é uma memória recente minha escutando Clocks do Coldplay na pista de skate enquanto olho as estrelas brilhando ternamente no céu acima. Foi um dia incrivel.
O três me fazia lembrar das adoráveis bochechas de Rebecca quando ela dava um sorriso carregado que logo se transformava em uma gargalhada ou quando ela fazia um biquinho me jogando beijos de longe; o quatro me recordava das vezes que Irin tocava violão para mim e cantava algumas músicas do The Killers que ela aprendia só porque sabia que eu gostava e o cinco era a risada de Noey quando eu fazia alguma coisa idiota (o que acontece muito) e os seus olhos virando pequenos no rosto quando ela os fechava ao rir muito.
Essas memórias são o ponto mais aconchegante do meu cérebro e acessá-las me traz uma paz enorme. Eu só não sei porque não está funcionando agora.
- Um, dois, três, quatro, cinco. - Seguro os dedos da mão direita enquanto conto, estão um pouco trêmulos e suados. A minha voz também acaba falhando um pouco.
Do outro lado da quadra da escola, um gato preto solitário me encara com seus olhos amarelos brilhando assustadoramente. E o mesmo que costumava me perseguir pela rua antes, me espreitando com um ar frio no rosto felino. Apesar de toda a movimentação ao meu redor, a bola de basquete quicando no chão, o time masculino correndo de um lado para o outro com os tênis fazendo barulho no piso, as meninas do time de vôlei se alongando perto das arquibancadas e o professor gritando que vai pegar mais bolas no vestiário, eu não consigo tirar meus olhos do animal parado a metros de distância de mim.
Porque isso está acontecendo de novo?
Eu jurei para mamãe que ficaria bem, e prometi à Rebecca que me esforçaria para não ficar doente de novo por mim mesma. Eu não fiz nada errado. Juro que não fiz.
Tento piscar com força para ver se ele some, aperto os dedos até sentir as unhas incomodarem a pele e me forço a controlar a respiração totalmente instável.