CAPÍTULO DOIS

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"Dentro de suas lembranças mais escuras está a resposta
Se você si atrever a encontrá-la."
- The Light, Disturbed. -

°°°°°°

Alina resmungava enquanto atravessava as ruas desertas, seus passos rápidos enquanto tentava se ajustar ao máximo com a mochila nas costas, o celular em uma das mãos e os fones de ouvido apressadamente colocados. À medida que corria, as casas se afastavam cada vez mais, e as árvores se tornavam maiores e mais frequentes. Até que a rua deu lugar ao cascalho, que por sua vez foi substituído por terra batida e grama. Só então ela diminuiu o ritmo para uma caminhada atenta, com os olhos focados no chão em busca da leve luz acinzentada atrás de arbustos ou coberta por areia e folhas secas.

Ela sentia os músculos tensos como de costume, a pulsação acelerada e a impressão de estar sendo observada, olhos em sua nuca que ela não podia ver. E eles estavam realmente lá, próximos o suficiente para que Alina nunca deixasse de sentir sua presença, mas distantes o bastante para que fosse impossível seus membros feitos de sombra tocarem nela, por mais que tentassem.

Depois de algum tempo, o brilho prateado apareceu, oculto atrás de um arbusto o suficiente para que ela pudesse achá-lo, mas que também não fosse notado por qualquer um que passasse por ali. Alina parou e deixou suas coisas embaixo de uma árvore particularmente grande, se agachando para pegar o que precisava da mochila. Ela trincou os dentes contra o frio penetrante quando tirou as próprias roupas e as deixou cair nas raízes da árvore, trocando por outras peças. Em questão de segundos, vestia seu traje habitual, feito sob medida para ela, aquecido e flexível o quanto necessitasse.

Ela juntou suas roupas do chão e enfiou tudo na mochila, colocando-a de novo nas costas e guardando o celular em um dos compartimentos internos da jaqueta camuflada que usava agora. Com mais calma, recolocou os fones nas orelhas e só então mexeu no arbusto, revelando um fuzil cuja alça passou por cima da cabeça e encaixou nas mãos. O peso familiar forçando seus músculos de uma forma mais agradável do que admitiria em voz alta.

- Em posição? - a voz grave nos fones perguntou, e ela se pôs em movimento mais uma vez, levando a mira do fuzil ao rosto e ativando a visão noturna, o que fez a mata ao redor se clarear instantaneamente.

- Quase - murmurou em resposta, e o outro lado ficou em silêncio, nada além do som de teclas preenchendo sua audição enquanto se esgueirava por entre as árvores, suas botas passando por galhos e folhas ressecadas sem fazer ruído algum.

Conforme andava, sua mente se esqueceu das teclas constantes, e Alina pensou, não pela primeira vez, no porquê de estar ali. O motivo de fazer o que fazia... "Livi", ela se lembrou, um calafrio perpassando sua coluna ao imaginar Olivi em casa sozinha enquanto ela percorria os limites de Darkfalls empunhando uma arma. "E sua mãe..." Apesar de doloroso pensar nisso, também era por sua mãe. Afinal, o pai de Alina gostaria que ela lutasse por Thalia também, por mais que ela própria não lembrasse de lutar por elas ou por si mesma.

"E claro... também havia ele, seu pai." Muito tempo já tinha se passado desde que ele se fora, mas Alina o conhecia o suficiente para ter certeza de que ele nunca aprovaria o que ela estava fazendo, mas também lembrava dele o bastante para saber que ele entenderia. De onde quer que estivesse, faria o mesmo por elas se estivesse em seu lugar. E, de certa forma, não era isso que ele passara a vida fazendo? Sim... Ele também se arriscara para manter a família em segurança; ele também correra por entre aquelas mesmas árvores e talvez até usasse o mesmo modelo de fuzil que ela segurava agora. A diferença era que ele não tinha uma equipe para apagar todos os seus rastros de olhos curiosos; a diferença era que ele não precisava mentir para elas; não precisava sair de casa na calada da noite e se obrigar a vestir o uniforme atrás de uma árvore para evitar que elas o vissem; a diferença era que ele protegia e salvava, ao invés de matar.

Éram essas coisas que a mantinham em movimento sempre que pisava naquelas áreas, era isso o que a impedia de jogar o celular descartável na parede quando  recebia  uma série de mensagens às 4:00 da manhã, e era também no que ela tentava limitar seus pensamentos antes da mira detectar uma fita vermelha,  fina e comprida pendendo presa num galho de uma das Árvores por perto. Assim sua cabeça voltou a focar no que ela tinha ido fazer e Alina soltou o fuzil, deixando pendurado em seu ombro e bater no seu quadril quando ela desprendeu a fita do galho e guardou no bolso, apoiando as mãos nos galhos mais próximos e pegando impulso com os pés para subir.
Não demorou até que Alina já estivesse no topo, o corpo devidamente posicionado de modo que ela estivesse estirada nos lugares mais grossos que sustentassem seu peso pelo tempo que precisasse e que a fizesse sentir o mais segura possível, dando a ela a liberdade de se inclinar para os lados sem medo de cair.

- Em posição. - ela avisou em um sussurro.

- Estamos te vendo. - a voz na linha retrucou e alina se segurou para não revirar os olhos enquanto esperava com o barulho das teclas ao fundo.

- Ok, tudo pronto. -

Alina pegou o fuzil e voltou o visor até o rosto, ajustando a mira de acordo com as informações que saíram do fone: direção... Quilômetros e velocidade, até que ela encontrasse o alvo ao longe, aumentando o zoom para ter certeza do que estava vendo. Ela viu com clareza a pessoa se mexendo pelas árvores, em um ritmo lento demais para ser uma corrida porém muito depressa para ser apenas alguém caminhando na natureza as últimas horas da noite.

A  visão de Alina se fixou naquele ponto Ziguezagueando pelas árvores e ela puxou o gatilho, a postura  endireitada e as mãos firmes quando ela disparou e o indivíduo caiu, ao mesmo tempo que os tímpanos dela pareciam ter estourado com o impacto sonoro da bala e o susto fez Alina ter a sensação de ter saltado da própria pele, o que a fez pular e ela se desequilibrou, escorregando pelo tronco com as mãos agarradas a ele em uma tentativa de amenizar a queda, o que só fez com que sangue fosse arrancado dela e as mangas de sua jaqueta rasgadas enquanto os galhos pontiagudos raspavam nela durante a descida.

Mas a ardência dos arranhões foi temporariamente esquecida assim que Alina aterrissou no chão com um baque, e seus ouvidos que zumbiam naquele momento foram os  primeiros a assimilar  o ruído de estalo vindo do tornozelo dela antes da dor subir pela sua perna.

E havia outro som, um que Alina não podia ouvir, um som que fez as folhas das árvores se erissarem e e os troncos se inclinarem mais para trás como se quisessem se afastar da sombra que acompanhava a garota, a sombra que gargalhava silenciosamente e estremecia com seus risos enquanto Alina se dobrava com a dor.

A cidade das Lendas. (Darkfalls Número 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora