"E quando seus medos desaparecem
E as sombras ainda permanecem".
- November rain, Guns N. Roses. -°°°°°°
Alina apertou os dedos de Olivi nos seus enquanto caminhavam pela rua estreita, o som de seus passos se misturando com incontáveis solas que batiam e se arrastavam no chão, todos saindo de suas casas na mesma hora e indo para o mesmo lugar. As mãos dos mais privilegiados cheias com suas oferendas e seus corpos vestidos com prestígio ao passo que o resto deles vestiam fantasias de retalhos e andavam de mãos vazias, apesar dos bolsos pesados com o valor de moedas, jóias ou qualquer outra coisa que poderiam dar em troca de suas súplicas. Mas aquele não era o momento de se ressentir por isso... Aquela era a noite do festival, à noite em que a elite se permitia juntar com a ralé em gratidão a algo maior que todos eles, a noite em que Darckfalls se enchia de turistas ansiosos para verem por si mesmos as maravilhas da cidade das lendas; o inexplicável tão real quanto o frio que lhes congelava a pele naquela noite.
Porém, mais uma vez, isso não importava. Era a noite do festival, e nada importava além das festividades, da gratidão e da esperança que pairava perigosamente acima dos habitantes de Darckfalls. Inebriante e inalcançável, mas ninguém negaria que ela estava ali, dando ao vento uma leveza que não se podia sentir em nenhuma outra noite. Até mesmo Alina, que pensara ter erguido todos os muros para que aquela leveza não a atingisse, estava sentindo a de qualquer forma, a sensação de que tudo acabaria bem independente do que fosse, a nostalgia suavizando seus trejeitos alertas habituais e a fazendo sorrir por motivo nenhum.
Sentia-se estranhamente bem e tola com o colete de couro cinza desgastado que ficara apertado de mais nela, as calças camufladas que iam até seus tornozelos, um dos quais estava envolto por um gesso improvisado que ela mesmo enrolara assim que entrou no banheiro quando chegou em casa, mas a atadura estava escondida pelas botas que chegavam até pouco abaixo dos joelhos, todavia Alina quase não reparava na dor. Não quando respirava aquela energia que estalava pelo ar e observava Olivi ao seu lado, o olhar brilhando como Alina jamais vira e os pés calçados em tênis surrados saltitando a cada passo, fazendo os cachos escuros pularem junto, emoldurando o rosto meio escondido pelo chapéu de cabeça de cobra.
- Feliz? - Alina indagou quando subiram para a praça principal já lotada de pessoas, as fantasias familiares e os vendedores entoando seus produtos por cima das vozes da multidão, iluminada pelas centenas de luzes que rodeavam o espaço.
- Muito! - Olivi respondeu com um ofego, os olhos castanhos arregalados e virando-se de um lado para outro tentando devorar o máximo de informações que conseguisse.
Alina riu e ajeitou o chapéu na cabeça da irmã, a língua bifurcada da serpente pousando no ombro do macacão de escamas e deixou que a mão pousasse ali junto, se permitindo devorar os arredores também, os braços se arrepiando com o reconhecimento de tantas coisas que aparentemente não mudaram. E quando sentiu uma pontada no peito lembrou-se do porquê de não ter saído de casa por anos naquela data.
Ela esteve prestes a dar uma gargalhada ao olhar em volta e ver as mesmas crianças com coroas de flores correndo umas das outras; as mesmas adolescentes caminhando em grupos com fantasias sensuais de serpentes e versões mais justas da própria fantasia que Alina usava agora; viu garotos com orelhas de lobos sobre os cabelos e os mais ousados com a pele pintada de prata, todos rindo e brincando apesar do frio, apesar das pessoas de sobretudo e posturas menos cansadas do outro lado da praça, em uma divisão discreta, contudo bem óbvia.Alina se surpreendeu com o choque da mesmice, que conseguia ser de algum modo mais dolorosa do que se Alina pusesse os pés ali e estivesse tudo diferente de sua infância, mas não estava. E aquela familiaridade trouxera memórias de uma versão mais nova de si mesma. Correndo pela praça com o pai cintilando com tinta prateada, as mechas ruivas dela cuidadosamente arrumadas em uma coroa de flores assim como a mãe, aquela esperança que preencheu o ar transformando a memória muito mais dolorida.
"Sim, eles sabem que você se feriu outra vez
Alina afastou os pensamentos com um aceno de cabeça e um fio ruivo caiu em seus olhos com a força do gesto, ela não se deu ao trabalho de tirá-la dali e em vez disso pressionou o ombro da irmã, empurrando-a de leve na direção de um dos vendedores que gritava em um dos bancos de pedra, os braços estendidos a frente tilintando com correntes brilhantes e pingentes de lua.
- Colares lunares! Colares lunares dos nascidos da Lua, para lembrá-los de fazerem boas escolhas e para guiá-los em suas decisões. Venham, venham todos! Colares lunares! -
- Quanto custa? - Alina perguntou e achou ter visto os olhos do vendedor piscarem com um vislumbre de reconhecimento antes que ele disfarçasse, tirando duas correntes de um dos braços e o entregando na Palma aberta de Alina, que por sua vez deu duas notas ao vendedor quando ele nada disse. Então ele aceitou o dinheiro com relutância e o jogou na tigela a seu lado no banco, sem desviar a atenção delas até que elas passassem pelo banco e ficassem de costas para ele, que finalmente se deixou fazer uma expressão de pena para as irmãs.
Olivi não notou nada enquanto admirava o pingente de lua que pendia do pescoço, mas Alina trincou os dentes e resistiu ao ímpeto esmagador de se virar e gritar para o homem que não precisava da pena dele; que elas estavam bem; que ela tinha tudo sob controle. Alina não disse nenhuma dessas palavras.
Respirou fundo em busca daquela energia desconcertante e os dedos, que se agarravam no pingente de lua no pescoço, relaxaram.Alina voltou a sorrir e segurou a mão de Olivi, puxando-a para entrarem na fila junto com um grupo de turistas entusiasmados, liderados por um habitante de Darckfalls que gesticulava no início da fila para a trilha que os aguardava. O caminho de terra e grama era iluminado por uma manta de luzes e sombras das velas que contornavam a rota.
- o que é isso? - a voz de Olivi saiu pouco mais de um sussurro, as pupilas dilatadas com o esforço de olhar tantas coisas ao mesmo tempo.
- Você vai ver. - Alina sussurrou de volta, no momento em que o guia indicava para que todos fossem para mais perto e o grupo o seguiu, o sobretudo flutuando atrás do rapaz e formando mais sombras a medida que ele andava por entre o foco das chamas no chão.
Um suspiro coletivo os acompanhou quando adentraram o arco de luzes.
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A cidade das Lendas. (Darkfalls Número 1)
FantasíaHá três séculos atrás, a mãe natureza teve sua vingança. Há trezentos anos, fogo subiu pela Terra e consumiu o que queria, destruiu continentes inteiros, mas, por algum motivo, deixou sobreviventes. Deixou também lendas, histórias marcadas a fogo es...