CAPÍTULO TRÊS

50 22 132
                                    

"Talvez seja apenas sobrevivência,
otimista, mas cego."
- Already Over, Mike Anoda. -

°°°°°°





Alina desabou nas raízes da árvore segurando o tornozelo esquerdo, seus lábios repetindo os xingamentos que saíam dos fones abafados por seus batimentos que soavam em seus ouvidos. Ela mordeu a língua para impedir um gemido de escapar quando se levantou, as mãos agarradas ao tronco e deixando marcas vermelhas irregulares nos galhos que ela usava para se equilibrar, a respiração entre cortada e o tornozelo latejando fazendo com que sua visão saísse de foco várias vezes.

- Merda! Merda, merda, merda!! - ela fechou os olhos por um segundo e deixou o pânico tomá-la durante aqueles instantes antes de recuperar o controle de novo, o ar entrando e saindo de seus pulmões no automático e a mente polida de qualquer outra coisa a não ser a urgência.

Alina já estava em posição assim que o comando da linha mandou-a correr para a direita e ela obedeceu, não se preocupando em evitar o barulho em oposição a adrenalina que a inundava, anestesiando a dor do tornozelo machucado e a fazendo correr cada vez mais rápido, de tal modo que Alina nem notou os novos cortes feitos pelas orquídeas plantadas por onde ela corria, nem se deu ao luxo de se desesperar com o rastro escarlate que deixava a cada fôlego, o sangue pingando e formando um caminho certeiro até ela.

A sombra que deslisava atrás dela continuou a estremecer com suas risadas, passando por cima do rastro de sangue e matando a grama que rossava seus membros translúcidos, fazendo com que o sangue se espalhasse ainda mais e afundasse mais fundo na terra morta, como se a criatura quisesse se sertificar de que a marca escura não seria apagada.

Mas ela lamentaria por isso depois. Não tinha tempo para aquilo enquanto disparava pelas árvores e se xingava pela idiotice que havia feito:
"Idiota! Idiota idiota idiota..."

- Qual é o seu problema!? - a voz no seu ouvido berrava, dando Tom ao que passava em sua cabeça.

- Você quer morrer? Menininha burra... - Alina sentiu a raiva subindo pela garganta, sobrepondo-se a adrenalina e a frustração que borbulhavam sob sua pele. Ela arrancou os fones do celular e os enfiou no mesmo bolso do aparelho, desconectando-se da linha e substituindo o som da estática pelo barulho alto dos seus pés e da natureza ao seu redor.

Alina não desacelerou em nenhum momento, nem quando a grama virou estrada e a estrada se tornou pavimento. ela ponderou que talvez tenha sido outra burrice desligar-se da linha de comunicação, visto que ela precisaria da orientação deles para percorrer o caminho mais tranquilo, ainda mais naquela noite em que provavelmente alertara no mínimo uma tropa para aquelas áreas, e tudo porque ela esquecera da porcaria do silenciador...

Alina inspirou fundo o ar gélido da madrugada e se obrigou a ignorar a dor incômoda no tornozelo, reprimindo as emoções para o fundo do estômago e parando alguns instantes para olhar para cima a fim de traçar a melhor rota de volta para casa, de volta para Livi...
Ela assentiu para si mesma e retomou a corrida com menos afobação desta vez, o corpo se atirando pelas curvas e becos escuros, se misturando com facilidade as sombras das árvores e das mansões luxuosas, já tão acostumado com o caminho imprevisível que Alina quase não se esforçava à medida que dobrava esquinas e pulava muros aleatórios. Aleatórios para outros, mas não para Alina, que conhecia aquela cidade Como conheci a sua casa; independente da hora ou da quantidade de luz que haveria, ela sabia onde pisar, conhecia os atalhos e seus pontos fracos, ela sabia como não chamar atenção, por isso moldava a cidade como queria naquelas horas.

E apesar de aquelas serem as horas mais sombrias de sua vida, éram nelas que Alina mais se encontrava no controle de tudo, eram só naqueles momentos perturbadores que Alina se permitia acreditar que no fim das contas valeria a pena. Que em pouco tempo ela as levaria para o mais longe possível e elas finalmente esqueceriam de tudo aquilo, voltariam a ter a vida de antes e Alina não precisaria mais viver as custas do medo, ela conseguiria deitar na cama sem temer o próprio sono.

Alina manteve o ritmo constante, consciente de que aquela era a trajetória mais longa, enquanto se embrenhava nas sombras das árvores e evitava o brilho esverdeado das telas embutidas nas paredes. Ela se perguntava, como sempre, como teria sido viver na época antes do caos. Será que naquele tempo também havia pessoas se escondendo de telas e infringindo a lei para sobreviver? Ela supôs que sim, e embora sentisse certo alívio ao imaginar que não era a única, também sentia uma pontada de frustração ao perceber que, 300 anos depois, a humanidade não havia mudado tanto.

É claro que Alina sabia apenas o que era permitido saber: sabia que naquela época a natureza não era tão presente quanto agora e que isso era culpa deles. No entanto, havia muito mais coisas das quais ninguém tinha a menor ideia, mesmo após tanto tempo. Apesar dessas nuances, era óbvio para Alina e para muitos outros que estavam todos se dirigindo ao mesmo destino, até porque não havia esforço em esconder esse fato.

Diariamente, Alina assistia à energia ser cortada várias vezes na mesma noite, deixando o frio invadir a casa junto com a escuridão que o seguia. Em contraste, as mansões iluminadas podiam ser vistas de longe, pulsando com calor e energia, enquanto a poucos quilômetros dali, o povo se aglomerava e acendia fogueiras na esperança de se aquecer. O vento se enchia com os sussurros das preces feitas às suas lendas, em busca de uma ajuda que nunca vinha, e Alina já tinha cansado de esperar.

Alina apressou o passo ao perceber um brilho alaranjado se erguendo acima dela. Algumas ruas depois, já estava no jardim, pisoteando ervas daninhas e mancando até a varanda da frente. Parou com relutância, olhando para cima e observando o sol que se levantava, expondo-a em meio à grama mal cortada e coberta de arranhões. A luz cegante a fez piscar algumas vezes antes de bufar e se aproximar dos degraus, os dedos envolvendo rapidamente as chaves e o envelope áspero, grosso e pesado que abraçou contra o peito. Virou-se depressa para entrar, impedindo que qualquer tela pudesse ver o que tinha nas mãos, enquanto tentava se convencer de que aquilo era apenas segurança, garantia de comida e mais um passo para sua partida.

Então, Alina fingiu que não sentia a exaustão pesar sobre ela como um cobertor quando trancou a porta de casa. Tentou não sentir tanta satisfação ao se encolher atrás da porta com os joelhos no peito, tocando as notas de dinheiro nas pontas dos dedos, assim como ignorou o peso dos carregadores para as pistolas no fundo do envelope. Sabia que nunca usara as pistolas de emergência, apesar da burrice que cometera naquela noite, e esperava que continuasse assim.

Alina apertou o maço de dinheiro com mais força nas mãos e engoliu a gratidão que transbordava em lágrimas. Afinal, matara alguém para conseguir aquelas notas, não deveria ser grata por isso. Transformou a gratidão em resignação. Resignação e ódio que só alimentavam sua ânsia de sair daquele lugar o mais rápido possível.

A cidade das Lendas. (Darkfalls Número 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora