"E se você afundar no obscuro abismo profundo, eu mergulharia até você, e você faria o mesmo."
- Cherry Waves, Deftones. -°°°°°°
Os olhos se moviam por trás das pálpebras, inquietos, enquanto mãos invisíveis apertavam seu pescoço, prendiam seus braços e pernas, sufocando-a. Alina conseguiu abrir os olhos e respirar fundo várias vezes até que os batimentos cardíacos normalizassem, o corpo voltasse a obedecê-la e a respiração fluísse naturalmente. Suor cobria sua testa e suas costas quando ela se sentou no colchão rangente e esticou os braços acima da cabeça, notando só naquele momento a vibração debaixo do travesseiro.
Com um suspiro, colocou a mão sob a almofada para pegar o aparelho, mas não sem antes arranhar a pele acidentalmente na ponta afiada da faca. Murmurando um palavrão com a surpresa, puxou a mão segurando o celular e inspecionou o filete de sangue na lateral do dedo que brilhava contra a escuridão do quarto. Ela colocou a mão debaixo do travesseiro novamente e, desta vez, alcançou a lâmina pelo cabo, puxando a arma até o colo, acariciando sua parte larga com cuidado e deixando um rastro de sangue no aço polido enquanto, com a outra mão, desbloqueava o telefone e lia a série de mensagens recebidas três minutos antes.
Ela verificou o horário no canto da tela e bufou, chutando as cobertas para fora da cama e levantando-se, as pernas ainda trêmulas do sono perturbado. Alina se agachou e procurou com os dedos pela fresta no fundo do encosto da cama, a tábua solta de madeira que ela removeu com facilidade, retirando de lá uma mochila de couro preta, tão pequena que, quando Alina ajustou as alças nos ombros, a bolsa mal alcançou a metade de suas costas. Ela calçou as botas e empurrou levemente a porta entreaberta com o calcanhar. Sabendo exatamente onde pisar para não produzir nenhum ruído, seguiu pelo corredor silencioso da casa, a visão se acostumando com as sombras enquanto observava cada canto com atenção. Mesmo percorrendo aquele corredor no escuro quase todos os dias, seus instintos e o arrepio na pele a impediam de relaxar.
Talvez fosse a semelhança com a casa dos seus pesadelos, ou talvez seu senso de alerta estivesse ativado há tanto tempo que ela não sabia mais viver sem aquela sensação, aquela apreensão que a perseguia mesmo na cama, quando achava que podia se desligar de tudo por algumas horas e quando tudo o que queria era não se lembrar de nada.
Ela passou pelas portas fechadas de sempre: o quarto da irmã, o quarto da mãe... Contudo, ao passar pela porta da cozinha, Alina congelou no lugar. A mão segurou com mais força o cabo da faca e os olhos se estreitaram para enxergar melhor dentro do cômodo que deveria estar mergulhado na escuridão como o resto da casa, mas uma luzinha branca cintilava na mesa de jantar em desuso, iluminando escamas que se estendiam pelo mármore empoeirado, terminando em uma cabeça inclinada para fora do móvel, a língua bifurcada pairando a centímetros do chão e dois olhos brancos, completamente sem vida, voltados diretamente para ela.
Ela entrou na cozinha sem se preocupar em fazer silêncio desta vez, e um ofego vindo da mesa a fez hesitar.
- Livi? - Alina escondeu a faca no cós da calça e apertou o interruptor na parede, iluminando o lugar e revelando a mesa de jantar abarrotada de agulhas e linhas, pedaços de tecidos coloridos espalhados pelo piso e estendidos na mesa. O que ela pensou serem escamas eram, na verdade, camadas e camadas de tecido costuradas para imitar o corpo de uma serpente em um macacão velho, com um chapéu costurado ao capuz coberto de desenhos e tecido formando a língua e os olhos que a encararam.
E ali, no meio de tudo, com uma lanterna pendurada no punho, Olivi estava de pé em cima de um banquinho, os olhos arregalados na direção de Alina e as mãos ocupadas com uma tesoura e uma agulha, que parecia estar trabalhando nos pulsos do macacão coberto por escamas. Alina pigarreou e apoiou as mãos nos quadris, o olhar varrendo a cozinha mais uma vez antes de focar severamente na irmã mais nova.
- E então? - Olivi largou o que tinha nas mãos na mesa e levantou-as em um sinal de rendição enquanto descia do banquinho e contornava a bagunça no chão para ficar diante de Alina.
- Eu posso explicar...
- Estou esperando.
Olivi imitou a postura da irmã mais velha, erguendo o queixo pequeno e encarando Alina nos olhos antes de falar:
- Isso - Olivi apontou para a roupa na mesa - é a minha fantasia para o festival.
Alina abriu a boca como se quisesse dizer algo, mas Olivi a impediu com um gesto.
- Eu já sei o que você vai dizer. - Ela cruzou os braços no peito e fez uma careta, em resposta, Alina fechou os olhos e pressionou a ponte do nariz.
- Então, você provavelmente sabe que minha resposta é...
- Espera! - Olivi exclamou com firmeza e correu para pegar a fantasia, aproximando-se de Alina e erguendo a peça até onde podia. - Eu realmente acho que você poderia repensar...
- Livi...
- Estou falando sério. - Ela murchou os ombros e apertou o macacão contra si. - Você sempre amou ir ao festival quando tinha a minha idade; você sempre conta as melhores histórias sobre o festival com a mamãe e o papai. Por que agora que é a minha vez você não me leva também, como o papai te levava?
Alina mordeu o interior da bochecha e sua postura também se desfez. Realmente, ela amava ir ao festival quando tinha a idade de Livi, mas isso foi antes. Antes de assumir a responsabilidade pela família, antes de decidir cometer loucuras todos os dias pelo bem das três, antes do festival se tornar apenas mais um lembrete do que elas não tinham mais. Entretanto, parecia injusto com Livi, que nunca teria as mesmas lembranças felizes que ela, nunca saberia o que era ter mais do que a irmã mais velha em casa. Talvez Alina pudesse fazer Livi sentir o que ela sentia naquelas noites; duvidava que conseguiria, mas o que custava tentar?
- Olha - Olivi ficou nas pontas dos pés e ergueu a fantasia novamente, como se ao deixar a roupa na altura dos olhos de Alina a fizesse perceber algo diferente. - Eu não dormi essa noite porque estava fazendo isso. Se você não me levar, estaria jogando todo o meu esforço fora e...
Alina relaxou a mandíbula e passou a mão pelo cabelo, observando o trabalho da irmã e sentindo um toque de preocupação ao pensar nas mãos frágeis da irmãzinha mexendo com tesouras e agulhas, mas não podia negar que o trabalho estava muito, muito bom. Ela olhou para o sorriso de Livi, que já sabia quais seriam suas próximas palavras:
- Tudo bem - ela disse, mas antes que Olivi pudesse comemorar, ergueu a mão e acrescentou. - Mas, primeiro, você vai arrumar tudo isso - ela indicou a cozinha vagamente, e Olivi já começara a se abaixar para juntar os panos do chão.
- Depois, você vai direto para a cama enquanto eu preciso resolver uma coisa no trabalho - Olivi parou e olhou para ela com a testa franzida, fazendo sua garganta queimar com a mentira, mas ela engoliu o gosto amargo e continuou. - E, quando acordar, você vai dar um jeito de arrumar uma fantasia para mim.
Olivi lhe lançou um sorriso largo e correu para abraçá-la, o cheiro doce invadindo suas narinas ao afundar o rosto nos cachos ruivos da irmã.
- Só espero não me arrepender disso - Alina resmungou quando a irmã soltou sua cintura, voltando a organizar a cozinha enquanto Alina se dirigia para a porta.
- E... por que logo a serpente? - Olivi parou mais uma vez e lançou outro sorriso largo, como se aguardasse por essa pergunta.
- Todas as crianças se vestem de espírito da floresta. É tão... entediante. A lenda da garota serpente é muito mais emocionante!
- Você chama essa história de emocionante? - Alina levantou uma sobrancelha com divertimento.
- Óbvio. Você não acha emocionante alguém se jogar de um precipício por amor?
Alina balançou a cabeça e riu.
- Hmm... Não. Eu com certeza não me jogaria de um precipício por amores - ela se virou e seguiu até a porta da frente, apanhando a chave no gancho ao lado do batente acompanhada da gargalhada de Olivi.
- Nem por mim? -
Alina girou a chave na tranca e a porta se abriu com um gemido, deixando a brisa gélida da noite adentrar a sala e sacudir as cortinas, seus músculos tremendo com o frio repentino.
- Só por você! - ela entoou com um sorriso nos lábios antes de trancar a porta de novo, atravessando a varanda da frente e escondendo as chaves em uma das plantas mortas debaixo dos degraus.
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A cidade das Lendas. (Darkfalls Número 1)
FantasyHá três séculos atrás, a mãe natureza teve sua vingança. Há trezentos anos, fogo subiu pela Terra e consumiu o que queria, destruiu continentes inteiros, mas, por algum motivo, deixou sobreviventes. Deixou também lendas, histórias marcadas a fogo es...