Por alguma razão, organizar velórios parecia ser uma das especialidades de Tamlin.
Preparar cerimônias, limpar o sangue no mármore xadrez, recolher corpos e queimá-los faziam parte da sua vida desde muito antes do que era considerado aceitável. Por muitas vezes, Tamlin não sentia nada além de um vazio silencioso quando fazia essas coisas; era como um trabalho, algo que precisava ser feito e ele era a melhor opção. Em outras raras ocasiões, aquele vazio ecoava, reverberando dor por todo seu peito durante dias, como um ferimento latente que volta a doer de repente e Tamlin sabia que nunca seria capaz de se curar.
Nesses dias em que o vazio se tornava profundo demais, ele se pegava pensando que um corte ou uma queimadura não doeria tanto quanto ver as pessoas com quem havia construído memórias, se tornarem memórias. Era um sentimento ambíguo, que o assombrava por centenas de anos como algo à espreita pronto para devorá-lo.
Felizmente, o velório que organizou naquela manhã era mais simbólico do que sentimental. Sendo uma última prestação de respeito a um colega de anos.
A maioria dos sentinelas não concordou quando Tamlin informou que Cal seria velado como um macho morto em batalha, mas eles não entendiam a culpa que pesava sobre os ombros do Grão-Senhor, nem seus princípios mais pessoais. A verdade é que Tamlin não queria ser injusto ou desrespeitoso com seu sentinela mais uma vez, deixando que seu corpo fosse devorado pelos abutres como um indigente depois de anos servindo à sua guarda fielmente.
O Grão-Senhor tirou o ferro de marcação da braseira assim que a bandeira primaveril foi abaixada no pátio de treinamento do forte. Pressionou as letras quentes no tecido grosso e viu a fumaça subir por tempo o bastante para que o nome ficasse marcado sem que ateasse fogo no pano. Era uma das tradições da Guarda Primaveril. Durante a guerra contra Hybern, Tamlin precisou de uma nova bandeira, mas não conseguiu marcar todos os nomes nela antes de se sentir tão destruído que precisou deixar o forte sem terminar seu trabalho.
— Ele não merecia ter seu nome cravado na bandeira, era um traidor. — Um dos seus sentinelas enfileirados para a cerimônia sussurrou alto o bastante para ser ouvido.
Tamlin tirou o ferro de marcação com cuidado para não trazer parte do tecido junto, e assoprou as cinzas.
— Cal serviu a guarda durante duzentos anos. — O Grão-Senhor declarou, era resposta o bastante para ele.
Eles deviam entender que, em algum momento durante essas centenas de anos, Cal tinha honra e valor para o forte, mesmo que atualmente não possuísse mais nenhuma.
A bandeira foi içada novamente, erguendo-se pelo murro alto, deslizando por toda a sua extensão até quase tocar o chão. Aquela estava praticamente vazia de queimaduras, mas as duas menores ao seu lado não tinham mais espaço nem para uma vírgula.
Tamlin era bom em organizar velórios, porque estava sempre cercado pela morte. Dos corredores da mansão ao pátio do forte, ela o acompanhava como um fantasma silencioso por toda parte.
A pequena embarcação carregando o corpo de Cal foi lançada nas águas do rio, ao leste da mansão, marcando o final das cerimônias naquele dia. O movimento das rodas do moinho, localizado mais à frente do píer onde Tamlin estava, fez o barco descer rio abaixo com mais agilidade do que deveria. No entanto, ele não se importou com isso; desejava que aquilo terminasse logo para poder voltar para a mansão um pouco mais cedo. O Grão-Senhor ordenou aos arqueiros que preparassem suas flechas, acendendo-as no fogo de tochas e as lançando no tecido inflamável que cobria o corpo.
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𝐂𝐨𝐫𝐭𝐞 𝐝𝐞 𝐏𝐫𝐢𝐦𝐚𝐯𝐞𝐫𝐚 𝐞 𝐋𝐮𝐚𝐫
Fanfic꧁ Ela roubou mais do que uma vida. Agora pagará com muito além do coração. ꧂ ✦ "Parceiros, semelhantes, iguais, aquele com quem combina em todos os sentidos." Os boatos que corriam por Velaris, as piadas envolvendo o seu nome - das quais eu...