Ponto de virada

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   Apesar de não ter se esforçado em nada para esconder a própria infelicidade, ninguém pareceu particularmente interessado em questionar Elizabeth quanto ao seu humor, enquanto jantavam em Longbourn.

   Queria não reparar no semblante abatido de seu pai, e queria ainda mais não reparar no modo como ele nem parecia se importar, como se seu mal estar fosse fruto da mente ansiosa da jovem, que se contentava em analisá-lo a distância.

   — Correspondência desta tarde, Senhor Bennet. — uma das criadas se aproximara dele, carregando uma bandeja com um envelope.

   Incapaz de esconder sua própria curiosidade, os olhos da Senhora Bennet se arregalaram um pouquinho mais quando o esposo apanhou o recebido, lendo a mensagem para no fim lançar a folha sobre a mesa, visivelmente desgostoso.

   — O que houve, papai?! — Kitty perguntara, enquanto sua mãe apanhava a carta e lia por conta própria.

   — Lydia teve um filho! E ela, o bebê, e o Senhor Wickham estão vindo para Longbourn! — a matriarca anunciara aos gritinhos, só não chegando a desmaiar pois Mary estava ao seu lado, para a ajudar.

   Mais do que nunca, Lizzy entendera a reação do pai. O incidente que acontecera no ano passado, quando a filha mais moça dos Bennet fugira com o dito cujo só não havia terminado em tragédia, porque ele aceitara honrar Lydia e desposá-la. Ainda assim, a malícia em seus planos era algo que a Senhora Bennet pareceu esquecer facilmente, já que em tese saíra dessa com uma filha casada.

   — Não vos quero aqui! — o Senhor Bennet declarou em tom firme, enquanto tentava engolir suas batatas.

   — Mas meu querido, e quanto ao pequeno George?! Não quer conhecer nosso primeiro neto?! — a voz da mulher rapidamente embargara, ao abraçar a carta como se segurasse a própria criança.

   — Como se não me bastasse ter de hospedar Collins, ainda terei de abrir as portas para Wickham?! Quando Longbourn deixara de ser uma casa para se tornar um ninho de cobras?! — ele protestou, a fuzilando com o olhar, e mesmo Kitty não sendo alvo de sua repreenda, não pôde deixar de murchar um pouco ao lado do pai.

   — Pouco me importa se irá hospedar aquele homem odioso de sobrenome Collins! Estou falando de Lydia, a sua filha! — agora mesmo ela se irritara, levantando à mesa para o confrontar.

   — Minhas responsabilidades com Lydia acabaram quando ela passou de “Bennet” para “Wickham”! Diga mais alguma palavra a respeito e eu... — ele nunca chegara a completar sua fala, se encolhendo de dor ao apertar o próprio estômago.

   — Papai! — as três meninas gritaram em uníssono, correndo para socorrer o homem, que nesse ponto já caíra no chão.

   — Ah, meu querido! — Senhora Bennet se debulhara em lágrimas, claramente arrependida. — Alguém chame o médico, por favor!


...


   Fora uma madrugada terrivelmente sombria, onde ninguém em Longbourn conseguira dormir. Os gritos do Senhor Bennet podiam ser escutados por todos os cômodos, de modo que não havia como tentar escapar daquele pesadelo.

   — Cheguei o mais rápido que pude! — Jane exclamara à porta, assim que chegara à propriedade.

   — Sabe que não precisava ter vindo! Só lhe mandamos a carta para que tomasse ciência do estado de nosso pai! — Elizabeth a repreendera, afinal a irmã estava grávida, a agora ainda mais próxima de seu quarto mês.

   — Deixe de bobagens! Charles me acompanhara na carruagem, e agora só está no estábulo, ajudando o cocheiro com os cavalos! — Jane dispensara aquela advertência com um gesto de mão, enquanto seus olhos já pareciam procurar por onde seria mais útil. — Oh, mamãe... — lamentara, correndo para os braços da Senhora Bennet, que claramente era a mais afetada naquela sala.

   — Pobre Senhor Bennet! Morrendo antes de conhecer os seus netos! — ela soluçava, chorando copiosamente nos braços da filha.

   — Lydia teve um bebê. — Mary pontuara, como se precisasse explicar o uso do plural no choramingo da mãe.

   — Longa história... — Lizzy suspirara diante do espanto da irmã mais velha, pouco antes de se por a explicar o que teria se ocorrido durante o jantar.

   Foi bom ter alguém a quem repassarem as últimas horas, pois as ajudava a não pensarem muito no que poderia acontecer nas horas seguintes. Havia uma linha muito tênue entre o Senhor Bennet conseguir se recuperar, ou vir a falecer, e nenhuma delas queria pensar naquilo.

   O mesmo se repetiu quando Charles, minutos depois, se juntara ao grupo, também sendo informado de tudo o que ocorrera até então.

   Quando o doutor apareceu à sala, horas depois, todos já se sentiam um pouco mais reconfortados para receber qualquer notícia que viesse. Para a felicidade geral, o Senhor Bennet tinha conseguido ser estabilizado.

   — Tentei ressecar o tumor o máximo de pude, mas precisei de muito ópio para isso. Certamente ele só voltará a acordar no dia seguinte. — ele anunciou categoricamente, enquanto limpava as mãos sujas de sangue. Jane nem mesmo precisou pensar antes de puxar a mãe para os braços, quando esta estourara em mais uma crise de soluços.

   — Por favor, mande a conta para Netherfield, assim que possível. — Bingley fora mais do que cavalheiresco ao se por de pé, tratando da questão no lugar de suas cunhadas.

   Elizabeth só podia agradecer por Deus ter colocado um anjo como aquele na vida de sua irmã, mas ao mesmo tempo não podia deixar de se sentir um pouco traída pelo pai. Acessos assim não aconteciam do nada, e se o Senhor Bennet passou tão mal após uma mera discussão, era sinal de que estava doente há muito tempo.

   Que os céus não permitam que ele se vá tão cedo.


...



   Aguardando por Elizabeth no ponto da estrada em que costumavam se encontrar, Anthony começou a esmorecer após uma hora ter se passado sem nenhum sinal dela.

   Teria a conversa no dia anterior a aborrecido ao ponto de fazê-la o ignorar? Acreditava que não, pois sabia que Lizzy teria arrumado um jeito de sinalizá-lo, caso não mais quisesse andar com ele.

   Ainda assim, a melancolia em seus olhos quando se despediram na última vez pareceu tão latente, que foi difícil não pensar no pior dos cenários.

   Já começava a mirar os céus, numa tentativa arcaica de calcular quantas horas teria antes do sol se por a pino, quando decidiu caminhar por conta própria para Meryton. Afinal, a distância e Aubrey Hall para aquele ponto era grande demais para se sujeitar a isto, e na cidade ao menos poderia alugar uma carruagem para casa.

   Girava os calcanhares no sentido contrário a Longbourn, quando o som mais do que reconhecível de uma carruagem o despertara do transe, o fazendo franzir o cenho diante da figura que parecia se aproximar na estrada. Fazendo sinal para o cocheiro, o veículo felizmente freou diante de seu pedido, revelando o rosto de um homem apático para fora da janela.

   — Bom dia, meu senhor. — mesmo preocupado, Anthony não pôde se esquecer das cortesias. — É impressão minha, ou acaba de vir de Longbourn?

   — Sim, milorde. — ele acenou com a cabeça, parecendo reconhecer algum grau de importância na silhueta do visconde. — Infelizmente, não pelo melhor dos motivos. — admitiu, e por um instante foi como se um nó tivesse se formado na garganta do rapaz.

   — Qual seria a profissão do senhor? — perguntara, mesmo que uma teoria já se levantasse em sua mente após espiar para dentro da carruagem, e ver o que parecia ser uma maleta.

   — Sou médico, milorde. Teria algo no que eu poderia ajudá-lo? — ele pareceu se desviar do assunto, como se temesse quebrar a confidencialidade em seu trabalho.

   Tantas situações poderiam levar alguém a solicitar um médico, desde as mais banais até as mais graves. Ainda assim, o visconde se viu assombrado com o pior que sua imaginação poderia conceber, que pela primeira vez se viu condenando sua mente fértil.

   — Poderia me dar uma carona até Meryton? Sei que precisa retornar o quanto antes ao seu consultório, e portanto não faço questão de atrasá-lo, o fazendo regressar a Longbourn. Basta me deixar na cidade, que saberei onde alugar a carruagem para mim. — Anthony solicitara, dando graças aos céus ao ver que o médico não pareceu se opor a sua ideia, chegando a lhe abrir a porta do veículo.

   Só podia rezar para que Lizzy estivesse bem.

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