V - Paciência

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Tenho sempre muita dificuldade em acordar.

Primeiro, porque sinto que é doloroso partir de um mundo onde eu sou dona e senhora para um mundo onde eu sou isso apenas aos olhos de duas pessoas.

Segundo, porque herdei o sono de pedra da minha mãe.

Tenho ainda mais dificuldade em acordar bem-disposta quando sou acordada bruscamente. Aliás, acho que todo o mundo é assim, só que uns têm maior capacidade de cobrir esse lado do que outros.

E foi exatamente o que aconteceu.

Mal abri os olhos, senti a respiração quente de outra pessoa. Hálito de menta, boca recém-higienizada. Seus olhos de cor de gergelim esperavam ansiosamente o encontro com os meus, tão perto que não havia espaço para eu sequer tomar um susto à vontade.

— É assim, fui incumbida de despertar a fera. Não que eu quisesse, mas não vou ter momentos como esse tão cedo, portanto nem adianta gastar seu latim comigo.

— Vá ao inferno. Acabei de conseguir adormecer.

— Não me diga! Conte algo que eu queira saber. — Atirei a almofada para a cara dela. Tentei virar para o lado, mas ela impediu — É sério, Lu, você vai se atrasar. Papai ficou um tempão esperando pra ter certeza de que você não quereria a boleia dele. Agora tá a léguas.

— Sury, me deixe dormir. Por favor. Você age como se não soubesse como é meu temperamento quando não consigo dormir.

— Se tudo correr bem, isso não será problema meu pelos próximos meses.

— Cara, vai namorar. Faça algo de útil, mas me deixe descansar.

— Você sabe que não vou sair daqui. — Senti uma tremenda raiva por ela ser tão insistente, mas não podia gritar com ela, principalmente sabendo que ela usava um casaco feito de razão. Resmunguei e xinguei baixo o suficiente para que ela não percebesse, mas alto o suficiente para que ela achasse aquilo a maior cena de comédia.

Fui andando devagarinho para o banheiro. Tomei um banho rapidamente e fui até a sala. Suryana carregava as malas com o maior esforço.

— Você vai mesmo se mudar. — Disse esticando o corpo para puxar a minha mala. O coque aparentemente feito apressadamente se desfez, e ela soltou um suspiro emburrado. Trouxe a mala até mim. Assim que levantou a cabeça, seus longos cachos marrom-escuros e loiros bateram na minha cara como pequenos chicotes. Seus olhos brilhavam mais do que nunca, e exibia um sorriso branco como a neve. Suas maçãs de rosto tavam naturalmente coradas, no seu tamanho avantajado. Linda.

— Tanta amabilidade... por quê?

— Não é porque eu amo você e vou sentir a sua falta. É porque vou desfrutar de algum tempo como a filha única. — Estiquei o braço para encaixar um abraço.

— Mas eu também amo você. Lembre que é apenas um teste, se a residência não funcionar, você vai voltar para o seu quarto.

— Faculdade tá cheia de tarados que têm erva e álcool. Duvido que você arrede o pé.

— Não seja idiota! — Vociferei, matando o ambiente. Ela se encolheu ligeiramente depois do tom que usei.

— Amarra o coque pra mim outra vez? Você sabe algo que eu não sei. — Mudou rapidamente de assunto. Ela já me conhece. Soltei a barreira e suspirei sorrindo. Amarrei o coque do meu jeito especial, deixando ele ligeiramente inclinado para a direita — Obrigada.

— Que horas são?

— Não sei, mas vá embora, não quero que perca o ônibus.

— Tá bom, Julieta mirim. As malas nem estão assim tão pesadas.

Olho de ÂmbarOnde histórias criam vida. Descubra agora