XV - Fratura

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Pelo calendário, já era domingo, mas não para todos. Emily tinha um despertador horrível para as três da manhã, e outro às seis. Sandra, por sua vez, tinha um para as sete e meia. Cada um deles mereceu um xingamento personalizado, dotados de criatividade que apenas o sono pode dar. 

Tive que fazer um esforço enorme para voltar a adormecer depois do barulho me despertar. Com o da Sandra, começou também o barulho inconfundível de água ricocheteando no chão. Algum tempo depois, veio Emily para reorganizar a bagunça que tinha feito na sua cama, só que um dos calções dela estava em cima da minha. Ela chegou perto de mim em bicos de pé e pegou o short. Mas, por algum motivo, escorregou e bateu na minha mesinha de canto. 

Por ter conseguido atingir o estado de dormência mais próximo do sono verdadeiro, não me importei muito. Simplesmente virei para que pudesse ignorar o que estava acontecendo, mas algo em meu coração disparou. Meus batimentos cardíacos aceleraram tanto que pensei que fosse explodir a cada palpitação. 

O meu gancho. 

Quis virar rapidamente a cabeça, mas ainda não dava. Mesmo vagarosamente, estiquei o braço em direção à mesinha, e fui apalpando tudo que alcançava. Não estava lá. Aí sim despertei completamente. Emily levantou, pegou no calção e resmungou algo consigo mesma e foi arrumando. No caminho, passou a mão pela nádega esquerda e caiu algo roxo de lá. Olhei para o chão, perto dos meus chinelos, e estava o que sobrava do objeto que tinha caído da Emily.

— Não, não, não, não, não, não, não, não... — Comecei a juntar os pedacinhos. Ela parecia nem se importar, ou sequer ter notado o que fez. Virou para mim com um olhar desinteressado, mas curioso por saber o motivo do meu lamento. Voltou para a sua organização.

— Desculpe. Acordei você, perdeu algo? — Perguntou fingindo desinteresse.

— Você me fez perder algo. — Franziu o cenho e ficou olhando para mim meio encabulada.

— Eu?

— Esqueça, falo com fantasmas.

— Ainda tá com sono, é? — Elevou o tom de voz. Lembrei do conselho do meu pai sobre gente elevando a voz. Não precisa elevar a sua pra ser compreendido.

— Emily é seu nome, não é mesmo? — Ficou parada olhando para mim durante algum tempo — Então, Emily. Você reparou que caiu algo de você?

— Não. O quê? — Ficou rodopiando, procurando no chão aquilo de que posso estar falando. Ficou olhando fixamente para um ponto em um dado instante — Só se for esse troço roxo aqui. — Troço.

— Acontece que esse "troço" é parte de um gancho. Um presente de...

— Ah, véi, nem vem com essa de que era importante. — Me cortou. Não estava acreditando no que acontecia — Não existem objetos insubstituíveis.

— Pena que cérebros também não. — Atirei. Ela inspirou profundamente antes de responder.

— Como é que é?

— E você ainda quer armar confusão em vez de admitir seu erro. Surreal.

— Mas é apenas um gancho. Não lhe dá poderes para ser mal-educada com quem você quiser.

— Não quer ir por aí. Apenas peça desculpas.

— Você tá sendo infantil.

— E você insensível.

— Então desculpa pelo seu ganchinho, okay? Eu compro um pra você se precisar. E vai perceber que objetos não são insubstituíveis.

— Já que é assim... — Fui pra perto dela, peguei o celular dela e atirei ao chão com o mínimo de força superior. Bateu com um dos cantos, quebrando parte do visor.

Olho de ÂmbarOnde histórias criam vida. Descubra agora