Rocky me acorda com seu hábito de lamber minha mão
quando quer comida. A luz do sol está forte e entra pela
minha janela, aquecendo o quarto. Meus olhos ardem, meu
rosto dói. Levo alguns segundos para me lembrar de tudo o
que aconteceu na noite passada.
Ares…
Sento-me em um pulo e olho para o espaço ao meu lado
na cama.
Está vazio.
Meu coração fica apertado. Ele foi embora? O que
esperava, que ele acordasse aconchegado em você? Sou
uma boba mesmo.
Sem pressa, vou ao banheiro escovar os dentes, mas
quando me olho no espelho, deixo escapar um grito.
— Santa Mãe dos Roxos!
Meu rosto está horrível, com todo o lado direito inchado e
um hematoma que vai da metade da minha bochecha até o
olho. Tenho um corte pequeno no canto da boca. Não fazia
ideia de que aquele homem havia me batido com tanta
força. Enquanto examino meu rosto, noto marcas nos
punhos e braços, suponho que de quando os homens me
arrastaram de um lado para outro.
Um calafrio me invade ao lembrar o que aconteceu.
Depois de tomar banho e escovar os dentes, saio do
banheiro de calcinha e sutiã, secando o cabelo com a
toalha.
— Calcinha do Pokémon?
Dou um grito ao ver Ares sentado na minha cama, uma
sacola com comida e dois cafés na mesa de cabeceira.
Cubro-me com a toalha.
— Achei que tinha ido embora.
Ele sorri daquele jeito que faz meu coração derreter em
segundos.
— Só fui pegar o café da manhã. Como você está?
— Bem, obrigada. É muito gentil da sua parte.
E gentileza não é seu forte, penso, mas não digo.
— Se veste e vem comer, a não ser que queira comer
assim, sem roupa. Eu não me importaria.
Eu o fuzilo com o olhar.
— Muito engraçado, já volto.
Já vestida e devorando o café da manhã, tento ignorar a
linda criatura na minha frente, porque, caso contrário, não
tenho como comer em paz.
Ares toma um gole de café.
— Preciso falar uma coisa. Não vou conseguir viver em
paz se não disser.
— O quê?
— Pokémon? Jura? Eu nem sabia que existia calcinha do
Pokémon.
Reviro os olhos.
— É minha roupa íntima, ninguém deveria ver.
— Eu vi. — Os olhos dele encontram os meus. — E
também toquei nela.
Quase engasgo com a comida.
— Ares…
— Que foi? — Ele me lança um olhar brincalhão. — Ah,
você se lembra bem, não é?
— Óbvio que não.
— Então por que está vermelha?
— É o calor.
Ele sorri maliciosamente, mas não diz nada. Termino de
comer e tomo um gole de café, mantendo os olhos em
qualquer lugar, menos nele, mas dá para sentir seu olhar
em mim. E isso continua me deixando nervosa. Eu me dou
conta de como estou vestida e de cada detalhe em mim queele pode ver e desaprovar, como o cabelo molhado e
despenteado.
Ares suspira.
— O que aconteceu ontem à noite?
Ergo o olhar e encontro o azul-escuro daqueles olhos que
me desarmam. Sinto que posso dizer tudo para Ares. Por
que confio nele mesmo depois que partiu meu coração?
Ninguém entenderia.
Passo a mão pelo cabelo.
— Saí do trabalho e decidi pegar um atalho. — Ares me
lança um olhar de desaprovação. — Que foi? Eu estava
cansada e achei que não ia acontecer nada.
— Você não deveria nem cogitar ir pelos caminhos mais
curtos e escuros àquela hora da noite.
— Agora eu sei. — Faço uma pausa. — Bom, fui por baixo
da ponte e esbarrei com três caras.
Procurando alguma coisa, lindinha?
Aperto minhas mãos no colo.
— Pegaram meu celular, e um deles…
Você é muito linda. Não chora.
As palavras do homem ainda me assombram.
Ares põe a mão sobre a minha.
— Você está segura agora.
— Dois deles foram embora e me deixaram com o outro.
Ele me arrastou para a escuridão e me mandou não gritar,
mas eu reagi, por isso me bateu. O garoto que ligou pra
você me ouviu, e o cara saiu correndo.
— Ele fez alguma coisa com você? — Os olhos de Ares
têm um brilho raivoso que me surpreende. — Tocou em
você?
Nego com a cabeça.
— Não, graças a Deus me socorreram a tempo.
Ele aperta minha mão, suas palmas são macias.
— Já passou, você vai ficar bem.
Ele sorri, e pela primeira vez não é um sorriso presunçoso
ou travesso, é um sorriso genuíno, um verdadeiro, um quenão havia me mostrado antes e que faz estragos no meu
coração. Ares Hidalgo parece tão sinceramente grato por eu
estar bem que sinto uma vontade ridícula de beijá-lo.
E é neste instante que me dou conta de que nunca nos
beijamos na boca, apesar de termos feito coisas mais
íntimas juntos. Por que ele nunca me beijou? Quero
perguntar, mas não consigo criar coragem para isso, não
agora. Além do mais, o que ganharia com essa pergunta se
um relacionamento com ele está fora de cogitação?
Ele foi carinhoso e gentil, se comportou como um perfeito
cavalheiro, mas isso não quer dizer que sua opinião tenha
mudado, muito menos a minha. Ares acaricia as costas da
minha mão com o polegar, e sinto que preciso agradecer.
— Obrigada, de verdade. Você não precisava fazer tudo
isso. Muito obrigada, Ares.
— Estou sempre às ordens, bruxa.
Sempre…
As palavras me causam um frio na barriga e meu coração
bate mais rápido.
Ares chega mais perto e segura meu queixo.
— O que você está fazendo?
Ele examina o lado machucado do meu rosto.
— Não acho que precise tomar nada, mas, se doer muito,
pode tomar um analgésico. Vai ficar bem.
— Você é médico agora?
Ares dá uma risadinha.
— Ainda não.
— Ainda não?
— Quero estudar Medicina quando terminar o ensino
médio.
Fico surpresa com a informação.
— Sério?
— Por quê?
— Achei que fosse estudar Administração ou Direito, como— Nunca imaginei você como médico.
Se bem que você seria um médico muito bonito.
— Isso é o que todo mundo deve pensar. — Ele estreita os
lábios. — Tenho certeza que meus pais e Ártemis acham o
mesmo.
— Eles não sabem que você quer estudar Medicina?
— Não, você é a primeira pessoa para quem eu conto.
— Por quê? Por que eu?
A pergunta sai da minha boca antes que eu possa contê-
la. Ares olha para o outro lado.
— Sei lá.
Mordo a língua para não fazer mais perguntas.
Ele se levanta.
— Tenho que ir, prometi ao Apolo que o levaria ao abrigo
de animais.
— Ao abrigo de animais?
— Você faz muitas perguntas, Raquel — afirma ele, de
uma forma que não soou rude. — Apolo adota cachorrinhos
quando a mamãe está de bom humor e permite. Se
dependesse dele, já teríamos dezenas de cachorros.
— Apolo é um doce.
Ares fica sério.
— Ele é mesmo.
— Pode mandar um oi por mim?
— Está com saudade de dormir com ele por acaso?
E aqui vamos nós com a instabilidade.
— Ares, vou esquecer que você disse isso porque se
comportou muito bem até agora.
Vai embora antes de estragar o momento, deus grego.
Ares abre a boca para responder, mas hesita. Por fim, diz:
— Bem, espero que você melhore logo. Se precisar de
alguma coisa, me avisa.
— Vou ficar bem.
Não tenho um celular para te avisar.
Ia dizer isso, mas não quero parecer carente. Talvez ele só
tenha falado isso para ser gentil e não espere que eu avise mesmo. Ares sai pela minha janela, e eu me deixo cair na
cama. Olho para o teto e suspiro.
* * *Dani está perplexa.
Ela não pisca, não se mexe, não fala.
Nem tenho certeza de que está respirando.
Até que ela começa a perguntar se estou bem, o que
aconteceu, se precisamos fazer uma denúncia formal, e
quando digo que não, ela rebate dizendo que, ao denunciar
esses homens, evitamos que eles ataquem outras garotas.
A verdade é que não quero que mais ninguém passe pelo
que eu passei, então, junto de minha mãe e Dani, vou até a
delegacia. Faço questão de mencionar aquela ponte que
eles parecem frequentar, na esperança de que a polícia os
encontre ali em busca de outras vítimas. Mamãe nos deixa
na casa de Dani depois de tudo porque vai estar de plantão
hoje e não quer que eu fique sozinha esta noite.
No conforto do quarto de Dani, conto tudo o que
aconteceu com Ares. Ela leva alguns minutos para
processar todas as informações. Para ela, fui de perseguir
Ares e brigar com ele por causa do wi-fi para, de repente,
fazer coisas superíntimas. Fico vermelha ao me lembrar do
que fizemos. Estamos sentadas na cama com as pernas
cruzadas e de pijama, e há um balde de pipoca entre nós.
Decidimos fazer uma última festa do pijama antes de as
aulas voltarem.
— Respira, Dani.
Ela inala, deixando escapar um longo suspiro, e ajeita o
cabelo escuro atrás das orelhas.
— Tenho que admitir, estou impressionada.
— Impressionada?— Sim, você baixou a bola dele quando precisou. Foi
muito corajosa. Estou orgulhosa de você.
— Não é pra tanto.
— Lógico que é. Nunca achei que você chegaria a ter algo
com ele, muito menos que faria ele baixar a bola. Parabéns!
— Ela levanta a mão para um high-five.
Insegura, bato minha mão na dela.
— Não foi fácil, Dani. Você sabe o quanto eu gosto dele.
— Eu sei, por isso mesmo estou dando os parabéns, boba.
Pego um punhado de pipoca.
— Às vezes, não consigo acreditar que a gente teve algo.
Ele sempre pareceu tanta areia para o meu caminhãozinho.
— Enfio todas as pipocas que consigo na boca.
— Nem eu consigo acreditar. Quem diria? A vida é mesmo
imprevisível.
Dani mastiga lentamente.
— Embora ache que ele está fora do meu alcance… —
Suspiro. — Ares não está interessado em algo sério, só quer
se divertir. Nem sei se ele gosta de mim.
Dani discorda estalando a língua.
— Deve gostar, para ter se envolvido com você. No
mínimo, está atraído fisicamente. Garotos não se metem
com garotas de que eles não gostam, não faria sentido.
— Mas ele me disse, com aquela cara estúpida e linda:
“Porque você gosta de mim, mas eu não gosto de você” —
repito com amargura, tentando imitar a voz de Ares.
— Se ele não gostasse de você, não teria tentado nada.
Nada mesmo.
— Já chega, Dani.
— Chega de quê?
— Não fala essas coisas, você me faz ter esperanças de
novo.
Dani junta os dedos e fecha a boca como um zíper.
— Bem, vou calar a boca, então.
Jogo uma pipoca nela.
— Não fica chateada — peço.
Ela faz apenas gestos, como se não pudesse falar.
— É sério isso, Dani?
Jogo outra pipoca, que ela agarra e come, mas não diz
nada.
— Dani, Dani, fala comigo.
Ela cruza os braços.
— Eu só disse a verdade, você que não quer acreditar.
Ares está ótimo. Ele tem dinheiro, é inteligente e pode ter
qualquer garota que quiser. E ainda assim você vem me
dizer que ele ficaria com alguém de quem não gostasse? É,
ele pode não querer nada sério, mas ele gosta de você,
Raquel.
— Está bem! Você está certa.
Dani joga o cabelo por cima dos ombros de uma forma
arrogante.
— Sempre estou. Agora vamos dormir. A última coisa de
que precisamos é enfrentar o primeiro dia de aula sem ter
dormido. É nosso último ano, temos que arrasar.
— A gente sempre está igual. Vivemos numa cidade
pequena, Dani.
— Você adora ser estraga-prazeres.
Dani se levanta e coloca o balde de pipoca no chão.
Nós nos acomodamos e nos enfiamos debaixo das
cobertas. Desligando a luminária da mesa de cabeceira,
suspiramos. Um instante de silêncio depois, o belo sorriso
genuíno de Ares invade minha mente.
— Para de pensar nele, Raquel.
— Ninguém nunca fez eu me sentir desse jeito.
— Eu sei.
— E dói muito ele não querer algo sério comigo. Faz eu me
sentir como se não fosse boa o suficiente.
— Mas você é, não duvide disso. Você fez bem em se
afastar dele, Raquel. Se continuasse, seria pior.
Pego uma mecha do meu cabelo e começo a brincar com
ela. Dani se vira para mim e ficamos uma de frente para a
outra, deitadas.— Dani, eu gosto muito dele.
Ela sorri.
— Não precisa dizer, conheço você.
— O que eu sinto por ele me faz querer agarrar qualquer
fiapo de esperança.
— Não complica tanto a sua vida pensando, você é jovem.
Se ele não sabe valorizar você, alguém vai saber.
— Acredita mesmo nisso? Parece impossível encontrar
alguém como Ares.
— Talvez não seja alguém como ele, mas alguém que faça
você se sentir como ele faz.
Eu duvido muito.
— Bom, é hora de dormir.
— Boa noite, baixinha.
Ela sempre me chamou assim por ser mais alta que eu.
— Boa noite, doidinha.
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