13 O incidente

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Eu me considero uma pessoa trabalhadora.
Precisei começar a trabalhar para ajudar minha mãe e
para comprar coisas que ela não podia me dar, não porque
não queria, mas porque seu salário de enfermeira só dava
para pagar o aluguel, as contas e o carro e outras despesas
da casa. Somos uma equipe.
Porém, hoje eu não queria vir trabalhar. Pensei em uma
centena de desculpas para não vir, mas a verdade é que
preciso do dinheiro e as aulas começam na segunda-feira,
então são meus últimos dias em período integral. Quando
as aulas voltarem, só poderei trabalhar algumas noites e
aos fins de semana, sem exceder as horas permitidas para
estudantes durante o ano letivo.
Já se passou quase uma semana desde a última vez que
vi Ares. Para ser honesta, não esperava sentir saudades
dele, já que ficamos juntos pouquíssimas vezes. Como
posso sentir tanta falta de alguém? Acho que também sinto
falta de segui-lo; esse era meu hobby estranho que me
dava emoção e adrenalina, e agora perdi os dois. Suspiro,
pegando minhas coisas e colocando-as na mochila. Dizer
que tive um dia ruim é pouco.
Ultimamente, ando distraída e bocejando o tempo todo.
Meu chefe me chamou a atenção três vezes e tivemos que
dar batata frita de graça para um cliente porque confundi o
pedido dele. Tiro o boné do McDonald’s e o coloco no
armário. Penso em trocar de camisa, mas nem tento; estou
com preguiça de ir ao banheiro, trocarei quando chegar em
casa.— Dia ruim, hein? — A voz de Gabriel me faz pular, e bato
o ombro na porta do armário.
— Meu Deus! Que susto.
Ele dá um sorriso tímido.
— Desculpa.
Sorrio de volta.
— Tudo bem.
Gabriel tira o boné, deixando à mostra o cabelo ruivo, e
agora posso ver sua cara direito: ele tem um rosto meio
fofo, do tipo que, se fizer olhinhos pidões, é capaz de você
cair aos seus pés.
— Então, estou curioso. Tem algum motivo para você ter
servido nuggets para alguém que pediu um McFlurry?
— Ah, você viu?
— Todo mundo viu. Você estava viajando.
Ele abre o armário e tira suas coisas.
— Que droga.
— Não se preocupa, já fiquei assim também.
Olho para ele com tristeza.
— Dani?
— Aham. — Ele olha para o interior do armário, perdido
em pensamentos. — Ela e eu somos de mundos diferentes.
Para ela, eu sou só o cara gato que trabalha no McDonald’s,
mais nada.
— Sinto muito.
— Relaxa, eu sabia que não daria certo, mas não esperava
me importar tanto com ela e tão rápido.
Ah, acredite em mim, eu entendo.
— Nem sei o que dizer, Gabo.
— Me conta a sua história.
— Minha história?
— Por que você está tão distraída hoje?
Fecho meu armário e coloco a mochila nas costas.
— Eu… tirei uma pessoa da minha vida há pouco tempo.
Ele… — Lembro-me das palavras frias de Ares. — Ele não
era o que eu esperava.— Decepção, né? Isso dói.
— E como. — Ando em direção a ele. — Tenho que ir. —
Passo ao seu lado para caminhar até a porta. — Boa noite,
Gabo.
— Boa noite, Raquel McNuggets.
— É sério?
— Vai levar uns dias até eu esquecer isso.
Mostro o dedo do meio, e ele parece surpreso.
— Tchau, novato.
Andar para casa nunca foi tão deprimente quanto hoje. O
som dos carros passando na avenida, as luzes alaranjadas
dos postes iluminando parcialmente as ruas. É como se o
ambiente tivesse sido moldado de acordo com meu humor.
Já é quase meia-noite, mas não me preocupo, o índice de
criminalidade é baixo nesta área e minha casa não é tão
longe.
Minha mãe sempre me disse que a preguiça não traz nada
de bom, e nunca imaginei que chegaria a um momento na
vida em que esse conselho faria tanto sentido, e da pior
forma. Porque, graças à preguiça, tomo uma péssima
decisão: pego um atalho.
Para chegar mais rápido ao meu bairro, decido cruzar por
baixo de uma ponte para cortar caminho. Está escuro e
vazio, e meu conhecimento dos índices de criminalidade
desta área não levou em conta as pessoas que vêm a esse
lugar escuro para usar ou vender drogas. Minhas pernas
ficam paralisadas quando vejo três homens altos debaixo da
ponte. A distância entre nós é bem pequena, pois a
escuridão serviu de camuflagem e eu não os tinha visto até
quase estar frente a frente com eles.
— Procurando alguma coisa, lindinha? — diz um deles com
uma voz grossa, tossindo um pouco.
Meu coração bate desesperadamente, minhas mãos
suam.
— Não, eu não… Não.
— Está perdida?— Eu p-peguei o caminho errado — gaguejo, e um deles
ri.
— Se quiser passar por aqui, vai ter que dar alguma coisa
em troca.
Balanço a cabeça.
— Não, vou pelo outro lado. — Dou um passo para trás e
nenhum deles se mexe. Será que me deixarão ir? — Por
favor, me deixem ir.
Estou prestes a me virar e ir embora quando meu celular
toca, quebrando o silêncio. Merda!
Apressada e trêmula, tiro o aparelho do bolso e o coloco
no silencioso para guardá-lo outra vez, mas é tarde demais.
— Ah, esse celular parece ser muito bonito. Não acha,
Juan?
— Parece mesmo, acho que seria um bom presente de
aniversário para minha filha.
Tento correr, mas um deles agarra meu braço e me
arrasta para a escuridão sob a ponte. Grito o mais alto que
posso, mas ele cobre minha boca e segura meu cabelo,
mantendo-me quieta.
— Shhh! Calma, lindinha. Não vamos fazer nada com
você, só passa o celular.
Lágrimas escorrem dos meus olhos. O homem cheira a
álcool e milhares de coisas ilegais.
— O celular. Agora! — exige outro deles, mas não consigo
me mexer.
O medo me paralisa, quero mexer minha mão e pegar o
aparelho, mas não consigo.
O terceiro homem emerge das sombras, segurando um
cigarro entre os dentes e com uma cicatriz no rosto.
— Está no bolso, segurem ela.
Não me toquem!
Grito, mas só murmúrios podem ser ouvidos, a voz
abafada pela mão do homem que está me segurando. O
cara com a cicatriz vem até mim e coloca a mão no bolso da
minha calça, lambendo os lábios.Quero vomitar. Por favor, alguém me ajuda.
Ele pega meu celular e o observa.
— Bonito, e parece novo. Vai ser um bom presente. — Ele
o entrega ao outro homem, seus olhos doentios ainda
presos no meu rosto. — Você é muito linda. — Seu dedo
enxuga minhas lágrimas. — Não chora.
— Posso deixar ela ir? Já pegamos o celular — pergunta o
que está me segurando.
O que agora está brincando com meu celular responde:
— Sim, Juan, agora pode.
Juan me encara e seus olhos descem para meu corpo.
Não, por favor, não.
O cara me solta, mas Juan me agarra e me puxa em
direção a ele por trás, tapando minha boca novamente.
Consigo sentir meu coração na boca, palpitando sem
controle. Não consigo respirar direito, não consigo me
mexer.
Socorro!
— Juan, já chega, é só uma menina.
— É, Juan, ela deve ter a idade da minha filha.
— Calem a boca, idiotas! — O grito ecoa em meu ouvido.
— Saiam daqui.
— Mas…
— Caiam fora!
Os dois homens trocam olhares, e eu suplico com os
olhos, mas eles decidem ir embora.
Não. Meu Deus, por favor, não.
Juan me arrasta para dentro do túnel, então começo a
chutar e gritar desesperadamente. Ele agarra meu cabelo e
me vira em sua direção.
— Colabora, não quero te machucar mais do que o
necessário. Vou destampar sua boca, mas se você gritar, vai
se dar mal, gatinha.
Assim que ele solta minha boca, eu grito.
— Socorro! Por favo…! — Ele me bate.Eu nem mesmo o vi levantar a mão, só sinto o forte
impacto na minha bochecha direita. Nunca fui agredida,
nunca senti uma dor tão forte e repentina. Fico desnorteada,
e ele me joga no chão, tudo gira e meu ouvido direito lateja.
Consigo sentir o gosto de sangue na boca.
— Tem alguém aí? — Ouço uma voz vindo de cima da
ponte, como se fosse Deus. — O que está acontecendo?
Juan se assusta e sai correndo. Eu rastejo para me sentar.
Todo o lado direito do meu rosto lateja.
— Socorro! Aqui embaixo! — Minha voz soa fraca.
— Ah, meu Deus! — É a voz de um homem. Após alguns
segundos, que parecem durar uma eternidade, um garoto
aparece no meu campo de visão. — Ah, meu Deus! Você
está bem?
Não consigo falar, estou com um nó na garganta. Só
quero ir para casa, só quero ficar segura.
Ele se ajoelha na minha frente.
— Você está bem? — Só consigo assentir. — Quer que eu
chame a polícia? Consegue andar?
Com a ajuda dele, eu me levanto e nós saímos da
escuridão infernal.
Mamãe…
Casa.
Segura.
Isso é tudo que meu cérebro consegue processar. O
garoto me empresta o celular, e com os dedos trêmulos eu
digito o único número que conheço: o da minha mãe. Mas
ela não atende, e meu coração afunda no peito. Lágrimas
encobrem minha visão.
— Quer que eu chame a polícia? — repete ele.
Não, não quero a polícia, não quero perguntas, só quero ir
para casa, onde estarei segura, onde nada pode me fazer
mal. Mas não tenho coragem de andar por essas ruas
sozinha, não outra vez.
Então lembro que o número da minha mãe era o único
que eu conhecia até pouco tempo. Até que Ares começou ame mandar mensagens e eu gravei o dele, de tão obcecada
que era.
No momento, não importa o que ele e eu combinamos, só
preciso que alguém me leve para casa, e o cara que me
salvou disse que estava com pressa porque perderia o
último trem. Esse telefonema é minha única salvação. Se
Ares não me atender, terei que chamar a polícia e esperar
sozinha.
Ao terceiro toque, escuto a voz dele.
— Alô?
O nó na minha garganta torna quase impossível dizer
algo.
— Oi, Ares.
— Quem é?
— É… a Raquel. — Minha voz falha, as lágrimas
escorrendo. — Eu…
— Raquel? Você está bem? Está chorando?
— Não, tudo bem, sim… Eu…
— Pelo amor de Deus, Raquel, me fala o que está
acontecendo.
Não consigo falar, apenas chorar. Por algum motivo
estranho, escutar a voz dele me fez chorar. O garoto toma o
celular de mim.
— Olá, sou o dono do celular. A garota foi agredida
debaixo de uma ponte. — Há uma pausa. — Estamos no
parque da quarta avenida, em frente ao prédio em
construção. Certo, tudo bem. — Ele desliga.
Eu sou apenas um mar de lágrimas. O garoto toca meu
ombro.
— Ele já vem, vai chegar em alguns minutos. Calma,
respira.
Os minutos passam voando, e não demora para eu ver
Ares correndo como louco até nós. Como eu disse, meu
bairro não é longe, mas ainda assim ele deve ter corrido
bastante para chegar aqui tão rápido. Está de calça depijama cinza e uma camiseta da mesma cor; seus pés estão
descalços e o cabelo todo bagunçado.
Seus lindos olhos encontram os meus, e a preocupação
em seu rosto me desarma. Levanto-me para caminhar até
ele. Ares não diz nada e me abraça rapidamente. Ele cheira
a sabonete e, neste momento de segurança, também cheira
a tranquilidade. Estou a salvo. Ele se afasta e segura meu
rosto.
— Você está bem? — Fraca, faço que sim, e ele passa o
dedo pelo meu lábio machucado. — O que aconteceu?
— Não quero falar, só quero ir pra casa.
Ares não me pressiona e olha para o garoto ao nosso lado.
— Vou cuidar disso, pode ir. Obrigado.
— Não há de quê, se cuidem.
Ficamos sozinhos. Ares me solta, se vira e se inclina para
a frente, oferecendo-me suas costas enquanto eu olho para
ele sem entender.
— O que você está fazendo?
Ele me lança um sorriso por cima do ombro.
— Levando você para casa.
Com cuidado, subo nas costas dele, e Ares me carrega
sem dificuldades, como se eu não pesasse nada. Descanso
minha cabeça em um de seus ombros. Meu rosto ainda
lateja de dor, e as lágrimas inundam meus olhos quando
penso no que acabou de acontecer, mas me sinto segura.
Nos braços do idiota que partiu meu coração, sinto-me
segura.
O silêncio entre nós não é incômodo, apenas quieto. O céu
está limpo, as ruas ainda estão movimentadas com alguns
carros, as luzes alaranjadas dos postes continuam
iluminando como se nada tivesse acontecido.
Chegamos à minha casa. Ares me coloca no chão e eu
abro a porta. Minha mãe não está, como de costume, então
ele entra comigo. Subo até meu quarto enquanto Ares pega
gelo na geladeira. Rocky me recebe entusiasmado, e só
consigo fazer um pouco de carinho em sua cabeça antes de mandá-lo ficar quieto, sentado no canto do quarto. Tiro a
mochila e me sento na cama.
Ares aparece com um saquinho de plástico cheio de gelo
e se senta ao meu lado.
— Isso vai ajudar.
Ele pressiona o saquinho no meu rosto, e eu gemo de dor.
— Desculpa.
Ares franze a testa.
— Pelo quê?
— Por ter ligado pra você. Sei que…
— Não — interrompe ele. — Nem pense nisso. Nunca
hesite em me ligar se tiver algum problema. Nunca! Está
bem?
— Está bem.
— Agora deita, você precisa descansar, amanhã vai ser
outro dia. — Obedeço e me deito, segurando o saquinho de
gelo junto à minha bochecha.
Ele me cobre com a coberta, e eu só o observo. Esqueci
como ele é lindo.
Senti saudades…
Penso, mas não digo. Ares parece se preparar para ir
embora, e o pânico de ficar sozinha me invade. Sento.
— Ares…
Os olhos azuis me encaram, esperando, e não sei como
pedir que ele fique. Como posso dizer isso se há uma
semana pedi para que fosse embora e não voltasse mais?
Não quero ficar sozinha, não posso ficar sozinha esta
noite.
Ele parece ler minha mente.
— Quer que eu fique?
— Quero. Você não precisa fazer isso se não quiser, vou
ficar bem, eu… — Ele nem espera eu terminar, já vai se
jogando ao meu lado na cama.
Antes que eu consiga esboçar alguma palavra, ele põe um
braço ao redor da minha cintura e me puxa para perto dele,
abraçando-me carinhosamente por trás.
— Você está segura, Raquel — sussurra. — Dorme, não
vou deixar você sozinha.
Coloco a bolsa de gelo na mesa de cabeceira e fecho os
olhos.
— Promete?
— Prometo. Eu não vou embora. Não desta vez.
O sono chega para mim, e estou naquele momento entre
a consciência e a inconsciência.
— Senti saudades, deus grego.
Sinto um beijo na parte de trás da minha cabeça, e logo
depois um sussurro baixo.
— Eu também, bruxa. Eu também.

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