— Nutella?
— Não.
— Morango com chantili?
Balanço a cabeça.
— Não.
— Sorvete?
— Não.
— Já sei, tudo junto? Sorvete, morango e Nutella?
Nego outra vez e Yoshi ajeita os óculos.
— Desisto.
Estamos sozinhos na sala. A última aula terminou há
pouco e Yoshi está tentando me animar. Está usando o boné
virado para trás e óculos, como sempre. Já é sexta-feira, e
passei a semana me arrastando pela escola. Não tive
coragem de contar para ninguém o que aconteceu, nem
mesmo para Dani. Estou muito decepcionada comigo
mesma, não acredito que consigo falar sobre isso ainda.
— Vamos, Rochi. O que quer que tenha acontecido, não
deixa isso derrubar você. Luta — aconselha ele, acariciando
meu rosto.
— Não quero.
— Vamos tomar um sorvete. Pelo menos tenta, pode ser?
— Seus lindos olhos me suplicam, e não consigo dizer não.
Ele está certo, o que aconteceu… aconteceu. Não posso
fazer nada para voltar no tempo. Yoshi estende a mão para
mim.
— Vamos?
Sorrio para ele e seguro sua mão.
— Vamos.Decidimos tomar um sorvete e nos sentamos na praça da
cidade. Está um dia lindo. Embora já tenha passado das
quatro horas, o sol ainda brilha como se fosse meio-dia.
— Lembra quando a gente vinha aqui todo dia depois da
escola no ensino fundamental?
Sorrio com a lembrança.
— Lembro, a gente virou amigo da senhora que vendia
doces.
— E ela dava doces de graça pra gente.
Rio, lembrando-me de nossas caras meladas. Yoshi ri
comigo.
— Eu gosto assim. Você sorrindo fica mais bonita.
Levanto a sobrancelha.
— Você está admitindo que eu sou bonita?
— Mais ou menos, talvez se eu beber um pouco eu dê em
cima de você.
— Só se beber? Aff!
— E a Dani? Não a vi na escola esses dias. — Ele toma um
pouco do sorvete.
— É que ela já faltou dois dias. Está ajudando a mãe com
um projeto na agência. — A mãe de Dani tem uma agência
de modelos muito renomada.
— Primeira semana e ela já está faltando, a cara da Dani.
— Ainda bem que ela é inteligente e consegue pegar a
matéria rápido.
— É.
Tomando o sorvete, reparo em como Yoshi fica me
olhando como se esperasse alguma coisa.
— Rochi, você sabe que pode confiar em mim, não é? —
pergunta ele, e não faço ideia do que quer com isso. — Não
precisa lidar com as coisas sozinha.
Suspiro com tristeza.
— Eu sei, é só que… estou tão decepcionada comigo
mesma que não quero decepcionar mais ninguém.
— Você nunca vai me decepcionar.
— Não tenha certeza disso.Seus olhos me encaram com expectativa.
— Confia em mim, talvez falar com alguém sobre isso
ajude você a se sentir melhor.
Não há um jeito fácil de dizer, então apenas falo, sem
rodeios.
— Perdi a virgindade.
Yoshi quase cospe o sorvete na minha cara. O choque em
sua expressão é completamente visível.
— O quê? É brincadeira, não é?
Estreito os lábios.
— Não.
Uma expressão indecifrável cruza seu rosto.
— Como? Quando? Com quem? Que merda, Raquel! — Ele
se levanta e joga o sorvete de lado. — Merda!
Levanto e tento acalmá-lo. As pessoas estão começando a
nos olhar.
— Yoshi, calma.
— Com quem? — Seu rosto está vermelho e ele parece
muito magoado. Yoshi segura meu braço. — Você nem tem
namorado. Me diz com quem foi!
Solto meu braço.
— Se acalma!
Yoshi leva as mãos à cabeça e vira de costas para chutar
uma lata de lixo. Ok, essa não era a reação que eu
esperava.
— Yoshi, você está exagerando. Se acalma.
Ele passa a mão no rosto e se vira para mim.
— Me diz quem foi pra eu poder socar ele.
— Não é hora de dar uma de irmão mais velho ciumento e
protetor.
Ele ri, sarcástico.
— Irmão mais velho? Você acha que essa é a reação de
um irmão mais velho? Você está cega pra cacete.
— O que está acontecendo com você, caramba?
Ele me encara, e parece que milhares de coisas estão
passando por sua cabeça.— Você está cega — repete ele em um sussurro. — Preciso
tomar um ar, a gente se vê.
E, sem mais nem menos, Yoshi vai embora. Fico sem
palavras na praça, o sorvete derretido escorrendo pela
casquinha, pingando no chão. Que merda é essa que
acabou de acontecer?
Suspirando, volto para casa.
***
É sábado, minha vez de fazer faxina.
Resmungando, sigo a lista de tarefas que minha mãe me
deu. Já fiz quase tudo, só falta meu quarto, então ligo o
computador e coloco uma música para me motivar. Abro o
Facebook e o deixo aberto, porque, agora que estou sem
celular, a rede social se tornou meu único meio de
comunicação.
Estou ouvindo “The Heart Wants What It Wants”, da
Selena Gomez, enquanto limpo a bagunça. Pego o controle
do ar-condicionado e o uso como microfone para cantar.
— The heart wants what it wa-a-a-ants.
Rocky vira a cabeça e eu me ajoelho na frente dele,
cantando. Um sapato bate na minha nuca.
— Doida! — grita minha mãe da porta.
— Ai! Mãe!
— Por isso você demora tanto para limpar. Deixa o pobre
do cachorro traumatizado.
— Você sempre acaba com a minha inspiração —
resmungo, me levantando. — O Rocky está encantado com
a minha voz.
Minha mãe desvia o olhar.
— Vai logo, pega as roupas sujas e me dá, vou lavar hoje
— ordena ela e vai embora.
Fazendo beicinho, olho para Rocky.— Ela ainda não reconhece meu talento.
— Raquel, ainda tenho outro sapato — grita mamãe da
escada.
— Já vou!
Depois de levar as roupas e terminar de arrumar meu
quarto, sento em frente ao computador. Entro nas minhas
mensagens do Facebook e fico surpresa ao encontrar duas
de pessoas diferentes. Uma é de Dani, e a outra, de Ares
Hidalgo.
Pisco, relendo o nome algumas vezes. Ele e eu não somos
amigos no Facebook, mas sei que mesmo assim ele pode
me enviar mensagens. Meu coração burro dispara, e sinto
um frio na barriga. Não dá para acreditar que ele ainda me
abala desse jeito depois de tudo o que aconteceu.
Nervosa, abro a mensagem.Bruxa.
É sério? Quem diz oi assim? Só ele. Curiosa para saber o
que ele tem a dizer, respondo, ríspida:
Que é?Ele demora um pouco, e fico cada vez mais ansiosa.
Vem aqui em casa quando puder.
Para você me usar de novo? Não, valeu. Queria escrever
isso, mas não vou dar a ele o gostinho de saber o quanto
fez eu me sentir mal.Você bebeu? Por que eu faria
isso?Você esqueceu uma coisa aqui.
Já disse que não quero o celular.
Ares enviou uma foto.
Quando abro, é uma foto da mão dele segurando a
correntinha de prata que minha mãe me deu quando eu
tinha nove anos, o pingente gravado com meu nome.
Instintivamente, minha mão sobe ao pescoço para confirmar
que ela não está comigo, nunca a tirei. Como não percebi
que estava sem ela? Talvez estivesse muito ocupada com
meu rancor pós-primeira vez.
A ideia de ver Ares me enche de raiva e agitação ao
mesmo tempo. Esse idiota me atingiu em cheio com sua
instabilidade. Recuperando um pouco da dignidade (só um
pouquinho), digito uma resposta.
Pede pro Apolo me devolver na
escola segunda-feira.Está com medo de me ver?
Não quero ver você.
Mentirosa.
Pense o que quiser.
Por que você está brava?
Você ainda pergunta? Só pede
pro Apolo me entregar e me
deixa em paz.Não entendi sua raiva, nós dois sabemos o quanto você
gostou. Consigo me lembrar muito bem de você
gemendo.Eu coro e desvio o olhar. Me sinto boba, já que ele não
pode me ver.Ares, olha, não quero falar com
você.Você vai ser minha de novo, bruxa.
Um arrepio pecaminoso percorre meu corpo. Não, não,
Raquel, não caia na dele. Não respondo e fico observando.
Ele volta a escrever.Se quiser a corrente, vem buscar, não vou mandar por
ninguém. Espero você aqui, tchau.Esse idiota!
Solto um grunhido de frustração. Se minha mãe perceber
que eu perdi a correntinha, vai me matar. Atirar um sapato em mim não seria nada comparado ao que ela faria comigo.
Depois de tomar banho e colocar um vestido casual de
verão com estampa floral, vou ao resgate do meu cordão.
Tenho estratégias objetivas para não cair nos jogos dele,
não vou nem mesmo entrar na casa, só esperar que ele
traga a corrente até o lado de fora.
Projeto resgate da correntinha sem perder minha
dignidade no meio do caminho ativado!