40 O sentimento

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RAQUEL
Chuva…
Chuva sempre me deixa melancólica. Meu quarto está
meio escuro, apenas uma pequena luminária acesa,
deixando o ambiente num tom amarelado. Estou deitada na
cama, fitando a janela e vendo as gotas caírem, e Rocky
está ao meu lado, no chão, com o focinho apoiado nas
patas.
Desde que cheguei da casa de Ares, não saí da cama.
Algumas horas já se passaram e a noite caiu. Uma parte de
mim se sente culpada, não sei por quê. Fizemos a coisa
certa ao ir embora, já que nos deixaram sozinhos. Além do
mais, não queríamos que acontecesse outra discussão entre
Carlos e Ares.
Estou pensando demais.
A chuva fica cada vez mais forte, então me levanto para
fechar a janela. A última coisa que quero é que meu quarto
fique todo molhado. Sempre que me aproximo dessas
cortinas, me lembro das vezes em que interagi com Ares
daqui.
Quando, por fim, chego até a janela, meu coração para.
Ares está naquela cadeira onde o vi pela primeira vez, as
mãos segurando a parte de trás da cabeça, os olhos fixos no
chão.
Pisco para me certificar de que não é coisa da minha
imaginação. Ares está ali, sentado, a chuva caindo sobre
ele. Está encharcado, a camiseta branca colada ao corpo. O
que ele está fazendo? Estamos no ou Pigarreio.
— O que você está fazendo aí?
Tenho que levantar a voz, porque o barulho da chuva a
abafa. Ares levanta a cabeça para olhar para mim. A tristeza
em seus olhos me deixa sem fôlego por um segundo, mas
um sorriso gentil surge em seus lábios.
— Bruxa.
Engulo em seco. Toda vez que me chama assim, me
destrói.
— O que está fazendo? Vai ficar doente.
— Está preocupada comigo?
Por que parece estar tão surpreso com isso?
— É óbvio. — Nem penso direito antes de responder.
De alguma forma, acho uma ofensa Ares não ter certeza
de que eu me importo.
Ele não diz nada, apenas desvia o olhar. Vai ficar parado
ali?
— Quer subir?
Independentemente da nossa situação atual, não posso
deixá-lo debaixo de chuva parecendo tão triste. Sei que há
algo errado com ele.
— Não quero incomodar — responde Ares.
— Você não vai me incomodar. Só seja legal enquanto
estiver aqui e vai dar tudo certo.
— Ser legal? Do que você está falando?
— Nada de tentar me seduzir.
— Está bem. — Ele levanta a mão. — Palavra de deus
grego.
Ares sobe, e, assim que põe os pés no meu quarto, me
dou conta de que talvez não tenha sido uma boa ideia
chamá-lo para vir, primeiro porque ele está sexy demais
com essas roupas encharcadas, e segundo porque está
molhando todo o meu carpete.
— Você tem que tirar essas roupas.
Ele me olha surpreso.
— Achei que não era para eu te seduzir.Desvio o olhar.
— Você está ensopado. Nem pense em tentar nada e tire
a roupa no banheiro. Vou ver se consigo encontrar algo que
caiba em você.
Obviamente, não encontro nada que sirva em Ares, só um
roupão de banho que minha mãe ganhou há muito tempo e
nunca usou. Fico na frente da porta do banheiro.
— Só encontrei um roupão.
Ares abre a porta, e eu espero que ele esteja se
escondendo atrás dela ou algo do tipo, mas não, ele sai de
boxer como se fosse a coisa mais normal do mundo. Deus
do céu, como ele é gostoso.
Minhas bochechas ficam vermelhas e eu olho para o outro
lado, estendendo a mão com o roupão para que ele o
pegue.
— Você está corada?
— Não — respondo, numa tentativa de parecer casual.
— Está, sim, mas não sei por que se já me viu pelado.
Não me lembre disso!
— Já volto.
Ele segura minha mão, o desespero evidente em sua voz.
— Aonde você vai?
— Estou fervendo leite para fazer um chocolate quente.
Relutante, ele me solta.
Quando volto, ele está sentado no chão encostado na
cama, brincando com Rocky. Nem mesmo meu cachorro
conseguiu resistir a ele. Ele fica fofo com esse roupão de
banho branco. Entrego a caneca de chocolate quente e me
sento ao seu lado; Rocky vem lamber meu braço.
Ficamos em silêncio tomando o chocolate, observando a
chuva bater no vidro da janela. Embora a distância de
nossos corpos seja o suficiente para que Rocky passe entre
nós, ainda sinto aquele nervosismo de quando ele está por
perto.
Ouso olhar para Ares, e seus olhos estão ausentes,
perdidos, encarando a janela.— Está tudo bem?
Ele baixa o olhar para a caneca de chocolate quente em
suas mãos.
— Não sei.
— O que aconteceu?
— Algumas coisas. — Ele passa o dedo pela borda da
caneca. — Relaxa, vou ficar bem.
Suspiro.
— Você sabe que pode confiar em mim, né?
Ele olha para mim e sorri.
— Sei.
Não quero pressioná-lo; sei que quando ele se sentir
pronto vai me contar o que está acontecendo. Aqui,
admirando a chuva e com uma xícara de chocolate, ficamos
em silêncio, simplesmente apreciando a companhia um do
outro. ARES HIDALGO
É bom estar aqui.
Nunca pensei que ficar em silêncio com alguém pudesse
ser tão reconfortante, especialmente com uma garota. As
únicas coisas que havia compartilhado com garotas até
agora tinham sido silêncios desconfortáveis, olhares
estranhos e muitas desculpas para afastá-las. Mas, com
Raquel, até o silêncio é diferente. Tudo com ela tem sido
diferente pra cacete.
Desde a primeira vez que nos falamos, Raquel foi
imprevisível; foi a primeira coisa que me chamou atenção.
Quando esperava uma reação dela, ela fazia o exato oposto,
e isso me intrigava. Gostava de provocá-la, fazê-la corar e
ver aquele vinco na testa dela quando ficava brava. No
entanto, nunca planejei sentir algo a mais.
É só diversão.
Repeti isso para mim mesmo milhares de vezes quando
me pegava sorrindo como um idiota pensando nela.
Só estou sorrindo assim porque é divertido, nada de mais.
Foi tão fácil eu me enganar, embora não tenha durado
muito. Soube que alguma coisa tinha mudado quando
comecei a rejeitar outras garotas por não sentir nada por
elas.
Era como se a Raquel tivesse dominado todos os meus
pensamentos, e isso me apavorava. Sempre tive o poder, o
controle sobre a minha vida, sobre o que quero, sobre
outras pessoas. Não podia abrir mão desse poder e deixá-lo
nas mãos dela.
Nessa batalha interna, machuquei-a diversas vezes. Sei
que cada golpe e cada palavra foram muito dolorosos para
ela. Queria acreditar que ela desistiria e que minha vida
voltaria ao normal, mas, no fundo, rezava para que não se rendesse e esperasse um pouco mais até que eu arrumasse
minha bagunça.
Ela esperou, mas também se cansou.
Ela quer que comecemos do zero? Quer que eu lute por
ela?
Por que não?
Se alguém merece meu esforço, essa pessoa é ela.
É o mínimo que posso fazer depois de todo o sofrimento
que lhe causei, e estou grato por ela pelo menos estar me
dando esta chance de fazer por merecer. Agradeço também
por ter me convidado para subir, estava precisando da
tranquilidade e da paz que ela me traz.
Termino meu chocolate e coloco a xícara de lado, então
estico as pernas e deixo as mãos ao lado do corpo. Atrevo-
me a olhar para ela, que ainda está assoprando o que
restou de seu chocolate. Acho que para ela parece mais
quente do que para mim, eu estava com muito frio quando
o tomei.
Aproveitando sua distração, observo-a com calma. O
pijama é do tipo que vai da cabeça aos pés, com um zíper
no meio e um capuz com orelhinhas para cobrir a cabeça. O
cabelo dela está em um coque bagunçado, como se ela
tivesse se virado na cama várias vezes. Não conseguiu
dormir?
Sem conseguir me controlar, meus olhos fitam seu rosto e
param em seus lábios, que se separam quando ela assopra
o chocolate outra vez.
Quero beijá-la.
Quero senti-la contra mim.
Sinto que já passou uma eternidade desde a última vez
que provei seus lábios, mas só faz uma semana.
Percebendo que está sendo observada, Raquel se volta
para mim.
— Que foi?
Estou com tanta vontade de pegar seu rosto em minhas
mãos e te beijar, sentir seu corpo colado ao meu. Balanço a cabeça de leve.
— Nada.
Ela desvia o olhar, o vermelho invadindo suas bochechas.
Amo o efeito que causo nela, porque ela causa o mesmo em
mim, mas ainda mais. Cerro os punhos; não posso tocá-la,
ela me deixou entrar aqui, não posso afastá-la de mim
agora.
Suspiro, ouvindo as gotas de chuva batendo na janela.
Sinto que estou muito melhor agora. Só de tê-la ao meu
lado faz com que me senta melhor.
Estou tão ferrado.
Sinto sua mão sobre a minha no carpete, o calor de sua
pele me preenche e me conforta. Não me atrevo a olhar
para ela porque sei que, se o fizer, poderei perder o controle
e implorar por seus beijos.
Com os olhos fixos na vidraça molhada, digo:
— Meu avô está internado.
Por um instante, ela permanece em silêncio.
— Ah, o que aconteceu?
— Ele teve um AVC e desmaiou no banho. — Meus olhos
seguem uma gota que desce devagar pela janela. — Os
enfermeiros da casa de repouso demoraram duas horas
para encontrá-lo inconsciente, então a gente não sabe se
ele vai acordar ou se vai ter sequelas graves.
Ela aperta minha mão.
— Sinto muito, Ares.
— Duas horas… — murmuro. Um nó se forma em minha
garganta, mas o engulo. — A gente nunca devia ter deixado
meu avô ser levado para aquele asilo, tem dinheiro de sobra
para pagar uma enfermeira para cuidar dele em casa. Ele
estava bem em casa, e a enfermeira sempre checava tudo,
estava de olho nele. Tenho certeza de que, se ele estivesse
em casa, essa merda não teria acontecido.
— Ares…
— Devíamos ter lutado contra essa decisão, fomos uns
covardes. Meus tios queriam que ele fosse para o asilo, tenho certeza de que torceram muito para que ele
morresse, para poderem reivindicar a herança. Meus tios,
meus primos… — Faço um gesto de desgosto. — Eles me
dão nojo. Você não faz ideia do que o dinheiro pode fazer
com as pessoas. Meu pai foi o único que decidiu não viver
do dinheiro do meu avô, ele só pegou um pouco emprestado
para começar seu negócio e, depois que deu tudo certo,
pagou de volta. Acho que é por isso que meu avô sempre foi
mais próximo de nós; de alguma forma, ele admira meu pai.
Raquel acaricia minha mão de uma forma tranquilizadora
enquanto eu continuo contando.
— Meu avô sempre amou tanto a gente, e ainda assim a
gente deixou que o levassem para um lugar desses. E agora
ele está… — Respiro profundamente. — Me sinto tão
culpado.
Olho para baixo. Raquel se ajeita e senta no meu colo. O
calor do corpo dela acaricia o meu, e as mãos seguram meu
rosto, forçando-me a olhar para ela.
— A culpa não é sua, Ares. Não foi sua decisão, você não
pode se responsabilizar pelas ações de outras pessoas.
— Devia ter lutado um pouco mais, sei lá, ter feito alguma
coisa.
— Garanto que, se você tivesse encontrado outra solução,
teria feito alguma coisa. Você não vai chegar a lugar
nenhum se torturando desse jeito, agora só nos resta
esperar e ter fé de que tudo vai dar certo, de que ele vai
ficar bem.
Fito os olhos dela.
— Como você tem tanta certeza?
Ela me dá um sorriso sincero.
— Eu só sei. Você já passou por muita coisa, acho que
precisa de um descanso. Seu avô vai ficar bem.
Incapaz de me conter, puxo seu corpo e a abraço,
enterrando meu rosto no pescoço dela. Seu cheiro invade
meu nariz, acalmando-me. Quero ficar desse jeito, com ela junto comigo. Raquel me deixa abraçá-la e acaricia minha
nuca.
É libertador dizer a alguém o que sente, tirar um pouco o
peso dos ombros, como se estivesse compartilhando a dor.
Inalo seu cheiro numa respiração profunda e enterro o rosto
ainda mais no pescoço dela.
Não sei quanto tempo ficamos assim, e agradeço por ela
não ter se afastado, por ter me deixado ficar com ela
grudada em meu corpo.
Quando ela finalmente se afasta de mim, quero protestar,
mas não o faço. Meus dedos percorrem seu rosto com
delicadeza.
— Você é tão linda — digo a ela e a observo corar.
As costas de sua mão acariciam minha bochecha.
— Você também é lindo.
Uma sensação gostosa preenche meu peito.
Então isso é ser feliz. Este momento é perfeito: a chuva
batendo na janela, ela sentada no meu colo, suas mãos em
meu rosto, nossos olhos numa conexão tão profunda que
palavras não conseguiriam descrever.
Nunca pensei que viveria algo assim. Acreditava que o
amor era uma desculpa para deixar outra pessoa te
machucar, que deixar uma garota entrar no meu coração
me tornaria fraco. Agora estou aqui, deixando-a entrar, e o
medo diminuiu, ofuscado por esse sentimento acolhedor e
maravilhoso.
Lambo meus lábios e observo cada detalhe do rosto dela,
quero memorizá-lo. O som da chuva se mistura com sua
respiração suave, e meus batimentos ecoam em meus
ouvidos.
Abro a boca e digo antes mesmo de terminar de pensar:
— Eu te amo.
Os olhos dela se arregalam, a mão para em meu rosto. Sei
que ela não estava esperando, porque nem eu estava, as
palavras saíram da minha boca antes que pudesse contêlas. Fica um silêncio, e ela abaixa a mão para apoiá-la sobre
o peito, hesitando, a indecisão evidente em seu rosto.
— Tudo bem, não precisa responder nada — asseguro-lhe,
fingindo um sorriso. — A última coisa que quero é te
pressionar.
— Ares… Eu…
Seguro seu rosto e me inclino em sua direção; dou um
beijo em sua bochecha e, depois, sigo em direção ao seu
ouvido.
— Eu disse que está tudo bem, bruxa. — Minha respiração
em sua pele a faz estremecer, e eu gosto disso.
Quando me afasto, ela ainda parece indecisa, movendo-se
em cima de mim. Dou meu melhor sorriso, apertando seus
quadris.
— Não se mexe muito, tem um limite que eu consigo
suportar.
O sangue corre para o rosto dela, e ela abaixa o olhar.
— Pervertido.
— Maravilhosa.
Ela olha para mim de novo, vermelha feito um tomate, e
se levanta. Minhas coxas ficam frias sem sua proximidade.
Caramba, o que há de errado comigo? É como se eu
estivesse implorando desesperadamente por sua atenção,
por seu amor. Quem diria? Eu, implorando por uma garota,
dizendo a ela que a amo e sem receber uma resposta.
Bufo, sorrindo, tirando sarro de mim mesmo.
Lembro-me das palavras de Raquel aquela noite no bar de
Ártemis depois de me excitar e ir embora: O carma é uma
merda, deus grego. Ah, e como. Raquel recolhe as canecas
do chão e as põe sobre a mesa do computador para então
se virar e me lançar um olhar desconfiado.
— Está rindo de quê?
— De mim mesmo — respondo, sincero, e me levanto.
— Já está tarde — sussurra, cruzando os braços. Sinto que
ela está na defensiva, cuidadosa, e não posso culpá-la. Ela
tem medo de que eu a machuque de novo. — Quer que eu vá embora? — O medo na minha voz me
surpreende. Ela só me olha sem dizer nada, e eu pigarreio.
— Está bem. — Ando em direção à janela e vejo que a
chuva parou, mas ainda está garoando.
— Ares… Espera.
Viro para ela de novo. Raquel está apoiada na mesa do
computador, os braços ainda cruzados.
— Hum?
— Pode… ficar. — A voz dela é suave. — Mas nada de…
— Sexo. — Termino a frase por ela.
Raquel abre a boca para dizer algo, mas a fecha e apenas
assente.
Não consigo evitar o alívio que percorre meu corpo. Não
quero ir embora, a companhia dela é tudo de que eu
preciso. Eu sei que estar com ela na mesma cama vai ser
uma tentação difícil de suportar, mas farei o esforço.
O cachorro dela se estende na frente da janela enquanto
Raquel arruma a cama, joga as almofadas de lado e abre
espaço para nós dois. Ela se deita, rastejando sob as
cobertas, e eu a imito, deitando de lado para olhar para ela.
A cama tem seu cheiro e é muito reconfortante. Ela está
deitada de costas, o olhar grudado no teto.
Estamos perto o suficiente para que eu possa sentir seu
calor, e minha mente viaja para a noite em que a toquei
nesta mesma cama e ela quase foi minha.
Não pensa nisso agora, Ares.
Mas como não vou pensar? Eu a desejo tanto que aperto
as mãos para me impedir de tentar alcançá-la. Rolo até ficar
de costas, preciso parar de olhar para ela.
Fecho os olhos e me surpreendo quando sinto Raquel se
arrastar para perto de mim. Ela passa os braços pela minha
cintura e descansa a cabeça no meu ombro, abraçando-me
de lado. Meu coração acelera, e estou com vergonha que
ela pode escutá-lo.
É disso que eu preciso.— Vai ficar tudo bem — sussurra ela, e dá um beijo na
minha bochecha. — Boa noite, deus grego.
Sorrio como um idiota.
— Boa noite, bruxa.

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