54 O observador

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ARES HIDALGO
Nunca fui de ir a festas de aniversário.
Na casa dos Hidalgo já tem muito tempo que não damos
festas, apenas jantares de aniversário que terminam em
silêncio e sorrisos incômodos. De alguma forma, o clima
mudou muito depois de tudo o que aconteceu. E, entre
meus amigos, comemoramos essas datas especiais em
bares ou boates, mas também não chegam a ser festas de
aniversário.
Apesar de não ter esse costume, estou curtindo, o
ambiente é familiar e confortável. Não é uma mesa
comprida com um jantar nem uma boate barulhenta, então
está ótimo. As pessoas batem papo à vontade ao redor. Na
minha frente, Daniel e Apolo falam sobre alguma coisa da
escola.
Para ser sincero, se agora eu curto festas de aniversário
não é só por causa deste ambiente, mas sim por causa dela:
Raquel. Observo a garota de cabelos despenteados e olhos
expressivos que se infiltrou por completo em minha alma.
Ela dá um sorriso enorme para algo que Daniela diz, e todo
o seu rosto se ilumina. Está linda. Se uma festa de
aniversário a faz sorrir assim, sou capaz de ir a todas e até
organizar outras com prazer.
Nunca pensei que ela seria a pessoa que me faria sentir
tudo isso. Nas lembranças da minha infância, eu a vi várias
vezes do outro lado da cerca da minha casa, mas foi só há
pouco mais de um ano que a enxerguei de verdade. Ainda
me lembro do dia em que a peguei me olhando de sua
janela. Eu me fiz de desentendido, lógico, e fingi que não tinha reparado. De alguma forma, seu olhar curioso
começou a me interessar e passei a querer saber mais
sobre ela, do que ela gostava, o que fazia, em que escola
estudava.
Sua curiosidade sobre mim despertou a minha sobre ela.
E então um dia nossos caminhos se cruzaram e, embora
ela não tenha percebido, ainda lembro claramente.
— Vamos sair daqui. — Daniel boceja enquanto
caminhamos entre todas as exibições e barracas da feira do
colégio de sua irmã Daniela.
Ainda não entendo por que ela saiu da nossa escola e veio
para esta.
Eles organizaram uma feira para arrecadar fundos
destinados aos projetos escolares e pessoais dos alunos.
Daniel me arrastou para dar uma força para a irmã, mas
Daniela vendeu tudo o que trouxe e já foi embora. Então
não temos mais o que fazer aqui.
Mas, passando entre as pessoas, vejo ao longe várias
mesas com itens dos alunos à venda. Uma mesa em
especial chamou minha atenção: Raquel, a garota que
passa o tempo todo me observando da janela.
Ela está em um lado da mesa, oferecendo pulseiras feitas
à mão a todo mundo que passa, mas ninguém dá bola. Sua
mesa está cheia de pulseiras arrumadas e intocadas; duvido
que ela tenha vendido alguma. E tem uma plaquinha
dizendo “Arrecadação para pagar minhas aulas de xadrez”.
Xadrez?
Paro de andar porque, por alguma razão, não quero que
ela me veja. Daniel para do meu lado, achando estranho.
— O que foi?
— Vai indo para o carro. Já te alcanço.
Ele me olha desconfiado, mas segue seu caminho. Ao
passar pela mesa da Raquel, ele a cumprimenta e ela sorri.
Ela tem um sorriso muito bonito.
Uso as pessoas como escudo para observá-la sem ser
visto. Seu rosto é muito expressivo, é como se eu conseguisse saber exatamente o que ela está pensando só
de olhá-la.
O que está fazendo, Ares?
Minha consciência me repreende. Mas é só curiosidade.
Ela suspira e se senta atrás da mesa, com expressão de
derrota. Seus lábios fazem um biquinho de frustração, e seu
rosto é tomado pela tristeza. Não gostei disso. Vê-la assim
me incomoda, nunca nem falei com ela, mas mesmo assim
ela já me afeta desse jeito.
Não vendeu nada, olhos curiosos?
Procuro entre as pessoas alguém conhecido e encontro
um garoto que às vezes joga futebol com a galera, e dou
dinheiro para que ele compre todas as pulseiras que estão
expostas na mesa. Fico observando de longe como a
expressão arrasada de Raquel passa para incredulidade e
logo para felicidade e animação. Ela agradece várias vezes
ao garoto e lhe entrega uma sacola cheia de pulseiras.
O garoto me traz as pulseiras e vai embora, e eu continuo
ali, segurando a sacola e contemplando a garota curiosa
cujo sorriso eu gosto de observar.
— Ares?
Volto à realidade. Apolo franze as sobrancelhas,
esperando uma resposta a algo que não escutei. Seus olhos
vão de mim a Raquel, e ele então parece se dar conta.
— Você está vidrado nela.
Não me dou ao trabalho de negar, e Daniel balança a
cabeça ao pôr a mão no ombro do meu irmão.
— A gente perdeu ele.
— Eu sei, e você ainda tem que me agradecer. Foi graças
a mim.
— Shhhh! — Eu o mando ficar quieto porque não quero
que conte a Daniel como tudo começou.
Minha mente nostálgica viaja para outra lembrança:
— Você precisa que eu o quê? — Apolo franze a testa,
confuso.
Suspiro, incomodado.— Já te expliquei.
— Mas não entendo para que você precisa que eu faça
isso.
— Só faz e pronto.
— E você acha que ela vai acreditar em mim? Ares, ela
sabe que temos dinheiro. Como vai cair nessa conversa de
que não temos internet e estamos roubando a dela?
— Ela vai acreditar, sim.
— Se você quer falar com ela, por que não vai lá e fala?
— Não quero falar com ela.
Apolo ergue a sobrancelha.
— Sério? E por que não vai você mesmo até ela e diz que
está roubando o wi-fi?
— Porque eu quero prolongar isso o máximo possível,
quero que ela sofra um pouco. Ela merece, por ficar me
perseguindo.
Claudia entra com um cesto de roupa recém-lavada.
— Ah, reunião de irmãos, isso é novidade.
Apolo não hesita em contar para ela, apesar de eu fazer
sinal para que cale a boca.
— Ares quer me usar para falar com a vizinha.
Claudia dá uma risada.
— Ah, é sério? Está procurando novas vítimas, Hidalgo?
Olho para eles com cara de poucos amigos.
— Não é isso.
Claudia põe o cesto na cama.
— Então é o quê?
Eu a ignoro e olho para Apolo.
— Você vai me ajudar ou não?
Apolo se levanta.
— Bom, vou fazer isso hoje à noite. — E sai do quarto.
Em silêncio, Claudia arruma minha roupa no armário, com
um sorriso se insinuando nos lábios.
— O que foi? — pergunto. — Fala.
Ela continua sorrindo.
— Não tenho nada para falar.— Diz logo o que você quer me dizer.
Ela termina a arrumação e se vira para mim, apoiando o
cesto vazio no quadril.
— Que bom que você finalmente decidiu falar com ela.
— Não sei do que você está falando.
Claudia sorri. Não entendo qual é graça disso tudo.
— Nós dois sabemos do que estou falando. Foi muito
divertido ver vocês dois espiando um ao outro. Sempre
achei que ela tomaria a iniciativa, mas pelo visto você não
aguentou mais esperar.
— Você está falando um monte de besteira. Espiando um
ao outro? Como se eu precisasse ficar atrás de alguém.
Claudia faz que sim. Sua expressão irônica está me
irritando um pouco.
— Se você está dizendo, Hidalgo, tudo bem… Mas pedir
ajuda a Apolo já mostra o quanto está interessado na
garota.
— Você enlouqueceu, Claudia, não é o que está pensando,
só quero dar uma lição nela.
— Desde quando você investe seu tempo e energia em
dar lição numa garota? Por que resolveu planejar isso com
tanto cuidado?
Mordo os lábios.
— Não vou ter essa conversa com você.
Claudia me faz uma reverência.
— Como quiser, senhor. — E vai embora, ainda sorrindo.
Sorrio com essa lembrança, voltando a olhar para Raquel.
Talvez desde o princípio eu tenha demorado tanto para falar
com ela, para encará-la, porque sabia que ela seria a garota
que mexeria comigo dessa forma, que teria meu coração
nas mãos. Talvez eu soubesse desde o começo e por isso
relutei tanto, e, mesmo mantendo a distância, guardei esse
tempo todo debaixo da minha cama a sacola com as
pulseiras feitas à mão, como uma recordação concreta de
que naquela noite eu tinha feito a garota que me olhava da janela sorrir, e esse sorriso estaria gravado em minha
memória para sempre.

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