O Pôr-do-Sol

7 0 0
                                    

Era terça à tarde. Em um dia normal, eu estaria atrás da minha mesa na delegacia, encarando Trenton colar post-its coloridos para separar cada caso. Ao invés disso, eu estava no telhado do meu apartamento com uma camiseta do AC/DC e uma calça velha.

— Se você se esforçar um pouco...

— Eu não consigo, Jessie, eu só enxergo pessoas — falei. Nós dois encaramos a rua, quatro andares abaixo onde algumas pessoas caminhavam ou voltavam do trabalho.

Jessamine vestia uma calça jeans e uma blusa branca que deixava seus ombros desnudos. Havia um pequeno sinal no ombro que eu olhava nesse momento.

— Seu treinamento é falho — ela falou com desgosto — Todos os guias deveriam ser capazes de enxergar os espectros dentro dos vivos.

— Talvez alguma coisa aconteceu na nossa árvore genealógica quando chegou em mim — sorri de lado, sabendo que ela reviraria os olhos — Quem era o Guia antes de você?

— Meu tio-avô — ela contou — Ele estava doente e, um dia, disse para mim que eu assumiria uma grande responsabilidade. Eu só tinha cinco anos, achei que ele estava perdendo o juízo.

Assenti.

Jessie apoiou os braços na mureta. Seu olhar se voltou para o prédio alto de vidro duas ruas abaixo que tampava quase toda a visão do sol.

Tentei olhar para aquela paisagem pelos olhos dela — uma selva de pedras com carros, poluição e pessoas desconhecidas gritando umas com as outras por não ligar a seta. Ela estava muito longe de casa.

— Como é? O que você enxerga?

— É como se fosse uma parte do corpo. Eu sei que está lá e é diferente de cada pessoa. Quando vi Trevor naquela noite, ele havia perdido o que fazia dele o Trevor.

— Hum, isso é filosófico demais para mim.

— Você deveria ser capaz... — Jessie se virou para me encarar, encostando o braço no meu — Eu... Eu queria saber o que você vê em mim.

— Desculpe, Jessie.

— Tudo bem — ela suspirou — Eu concordei com os termos quando quis voltar.

Fechei os olhos. Pensei na garota de vestido azul dos meus sonhos. A garota que gritava como se chamasse minha atenção, mas eu não conseguia escutar o que ela dizia.

— Você não precisa ir embora depois — falei, sem tirar os olhos das pessoas lá embaixo — Você pode ficar e... Não sei... Frequentar a universidade.

Isso provocou uma risada em Jessamine.

— O que você faria?

— Acho que eu estudaria Medicina — ela disse com a mesma convicção de quem falava sobre o Outro Lado. Ela pensou sobre o assunto — O quê? — ela riu ao ver minha expressão.

— Pensei que você escolheria História ou algo assim.

— Eu vivi a história, Russell, não preciso estudá-la também — ela balançou a cabeça — Eu gosto de ajudar as pessoas. Passei minha vida ajudando os mortos, seria bom ajudar os vivos para variar.

— Combina mais com você do que com Trenton.

Jessie sorriu.

— Não — ela disse — Eu preciso aceitar que meu tempo já foi. Eu voltei para te ajudar e apenas isso. Não posso prolongar minha vida mais do que já fiz.

— Você não está fazendo nada de errado — eu me afastei da mureta para encará-la.

Sei que o meu eu do passado estaria puto se pudesse me ver agora, mas aquela pessoa não conhecia Jessamine, não sabia a pessoa especial que ela era.

— A vida foi arrancada de você injustamente. A vida foi arrancada de Sam injustamente — engoli em seco — Você deveria ter essa chance...

Jessie rodou o pequeno anel de esmeralda no dedo.

— E se outros Guias descobrirem?

— Os próximos Guias só vão se desenvolver mentalmente daqui a 20 anos. Até lá, você poderia me ajudar a manter as coisas no lugar. Digo, o mundo inteiro estará dependendo de mim. Isso não é nada bom.

— Você ficará bem — ela riu — Os espectros serão atraídos por você.

— Saber disso não ajuda muito.

Ela deu de ombros. O que aconteceria com ela quando voltasse para o Outro Lado? Para onde ela iria depois disso? Eu não sei se a ideia de haver um descanso eterno me agradava. Ficaria mais feliz se eu apenas parasse de existir.

— E se fossemos ao cinema? — ela perguntou, de repente.

— Cinema? Você ainda se assusta com o meu celular, acha que tá preparada para ver um filme em uma tela gigante?

— Apenas parece algo que todo mundo deveria ver antes de morrer — disse, sem tirar os olhos do pôr do sol à distância.

O Guia dos MortosOnde histórias criam vida. Descubra agora