Naquela noite, eu não vi Jessamine nos meus sonhos, mas vi a Coisa. Aquilo que estava afetando o mundo dos mortos. Não sabia dizer o que era, porém conseguia sentir uma raiva inflamatória me atraindo naquela direção. Ouvi gritos tão desesperados que mal pareciam humanos, então meu nome foi sussurrado pelas paredes.
A Coisa estava me chamando, ela me queria lá. Eu tentei resistir e fugir, mas eu estava e não estava em lugar nenhum. Era tudo escuro e não sentia meu corpo, apenas a raiva daquilo que estava afetando o Outro Lado e a vontade de sucumbir, a mesma vontade que senti quando aquelas almas tocaram meu corpo.
Eu queria... Eu precisava...
Eu acordei com a respiração pesada e com gotas de suor escorrendo pelo meu rosto. Afastei o cobertor do meu corpo e passei a mão pelo meu rosto. Puta que pariu.
Pelo canto do olho, vi Bolt correndo na direção da cama. Ele pulou em cima dos lençóis emaranhados e encostou a cabeça no meu colo.
— Ei, cara, como você está? — fiz carinho atrás da sua orelha e olhei para o relógio na cabeceira. Eram 10h02.
Vesti uma camiseta e ia fazer meu café quando lembrei da noite passada.
Ao invés de ir pra cozinha, fui para o corredor até a porta do apartamento e a destranquei. Na minha frente, como eu havia previsto, estava Jessamine com um pequeno sorriso no rosto, usando seu vestido azul meio encardido.
— Ingleses são mesmo pontuais — murmurei, abrindo passagem para ela — Fico feliz que esteja aprendendo a arte humana de usar portas.
Ela provavelmente poderia passar pela porta e por mim, mas eu notei que ela estava tentando fazer o máximo para agir como uma pessoa viva — claro, exceto pelas duas vezes que se materializou na minha frente.
Talvez fosse alguma forma de fingir que tudo estava bem, um mecanismo para se manter sã. Eu tentava, com muita dificuldade, entender Jessamine. Ela estava morta, mas o que ela era de verdade?
— Então, podemos ir?
— Eu preciso comer e... me vestir. Se acalme, ok? Algumas horas a mais não são nada para os mortos — comentei, indo em direção a cozinha.
Senti a irritação de Jessamine, mas não era o tipo perigoso de irritação que os fantasmas sentiam, era apenas a irritação de uma mulher com pressa. E eu convivia com muitas mulheres com pressa.
— Por que não usamos esse momento para nos conhecer melhor? — sugeri, abrindo a geladeira e tirando dois ovos de dentro. Jessamine falava demais, mas nunca sobre ela e isso não era um bom sinal.
Eu coloquei os ovos na frigideira e me virei quando o silêncio ficou insuportável. Jessamine se encostava na parede oposta, encarando a superfície da minha mesa. Seu olhar estava vidrado e, agora, ela parecia como Leonard e todos os fantasmas que já vi — perdida em pensamentos, deslocada em um lugar que não era seu...
— Eu já conheço você, Montague — respondeu, e seu olhar encontrou o meu. A maneira como me encarou enviou arrepios pela minha coluna. — Russell Theodore Montague. Trinta e dois anos. Detetive. Bebe demais, talvez devesse consultar um médico. Tem dois amigos...
— Isso é um pouco ofensivo. Eu devo ter pelo menos cinco ou-
— Nunca se casou — Jessamine continuou listando nos dedos —, mas traz uma grande quantidade de pessoas para casa no final do noite, o que eu acho um pouco depravado da sua parte. E isso não é nenhum anacronismo meu. Acho que os tempos não mudaram tanto assim.
— Há quanto tempo você vem me observando mesmo? — eu a interrompi com o olhar. Jessamine não estava mais encostada na parede e, sim, ao meu lado. O modo como se mexia rápido demais era o único indicativo de que ela não era humana.

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O Guia dos Mortos
FantasyUm fantasma de outro século e um detetive que não confia em ninguém estão prestes a entrar em uma missão arriscada e se envolver em uma relação impossível. Fantasmas existem. Russell T. Montague é capaz de ver fantasmas desde o acidente que matou t...