O Sonho

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Meus olhos iam cair do meu rosto. Larguei o casaco em um canto qualquer da mesa junto com a gravata e me debrucei no computador antigo da delegacia que travava a cada dois minutos.

Olhei para o relógio no canto da mesa. Já passava da meia-noite. Vi o advogado de Walter chegar, e Coleman e Rhodes o acompanharam até a sala de interrogação. Coleman me informou que os resultados da perícia tinham saído.

Eles tinham uma resposta agora, mas nenhum dos dois se incomodou em me dizer qual era.

Eventualmente, eu saberia já que estava encarregado de toda a papelada, mas não participar do momento em que tudo era revelado era angustiante. Eu mal conseguia ficar parado na cadeira velha, sem pensar no que estavam dizendo naquela maldita sala.

Olhei ao redor. A delegacia estava praticamente vazia, apenas alguns detetives do turno da noite vagavam por ali... A janela do escritório da capitã se encontrava fechada. O vidro que dividia a pequena cozinha do resto do escritório estava escura. Eu enxergava apenas as sombras de uma geladeira e armários velhos.

Um vulto se mexeu lá dentro.

Era uma figura baixa e curvada... Leonard.

Empurrei a cadeira para trás e fui até a cozinha. O velho estava parado, encarando o vazio.

Isso não é possível.

Eu o mandei embora. Ele não deveria voltar... Ninguém que eu mandava "embora" voltava.

Não sabia como funcionava, nem como eu era capaz de fazer isso, mas se eu me esforçasse e achasse uma forma de tranquilizar o fantasma, eles iam embora. Para onde eu não fazia ideia.

O que eu sabia era — eles não eram tão assustadores quanto Hollywood os fazia parecer, eles estavam assustados. O choque da morte era algo incompreensível para qualquer humano. Quando ficavam por muito tempo na terra, essa confusão ficava perigosa, eles poderiam ficar agressivos e, então, entravam os casos absurdos de assombração que ninguém acreditava.

Mas isso também dependia de cada situação. Eu já encontrei uma garotinha que, pela minha estimativa, passou cinco anos vagando pela terra e ela parecia tão normal quanto um fantasma deveria ser. Mais tarde, descobri que ela morreu devido a um câncer, não foi uma morte violenta como Leonard...

Eu precisava agir. Esses espíritos eram atraídos por mim e não de um jeito bom, acredite. Se ele estava aqui na delegacia, era por minha causa, não por Walter. Em minha vaga experiência, eles nunca iam atrás dos seus assassinos. O medo permanecia com eles no pós-vida.

— Leonard, cara! O que está fazendo aqui?

Leonard virou o rosto. Ainda era o mesmo velho estranho. Seus olhos meio esbranquiçados pela catarata não pareciam carregar nenhuma emoção. Isso era bom.

— Eu estou morto, não estou? — ele perguntou.

— Sinto muito — suspirei — É o ciclo da vida, certo? Você se lembra de alguma coisa da sua morte?

Leonard apenas balançou a cabeça e olhou ao redor. Ótimo. Sua memória já não devia ser boa enquanto era vivo, não seria depois de morto que isso melhoraria.

— Como você consegue me ver?

Eu me apoiei na bancada e me permiti soltar o ar que nem sabia que estava segurando. O velho não parecia apresentar nenhum perigo, só estava perdido, mas como ele conseguiu voltar ainda permanecia um mistério.

— Eu não sei. Eu apenas consigo — admiti e estava sendo sincero — Olhe, Leo, sua vida por aqui acabou. Não há mais nada que você possa fazer. Precisa ir embora daqui...

— Para onde? — ele franziu o cenho.

Essa era uma boa pergunta que eu não tinha uma resposta.

Ainda que tenha estudado em uma escola católica, eu não acreditava em céu e inferno. Eu queria acreditar que os fantasmas simplesmente desapareciam para lugar nenhum, porque a ideia de uma vida pós-morte parecia extremamente cansativa.

— Eu não sei, mas você poderá descansar.

— E encontrar Millie.

Millie devia ser sua esposa.

— E encontrar Millie.

Leonard começou a esboçar o começo de um sorriso, então assim como apareceu, ele sumiu mais uma vez.

Abri a geladeira e tomei um copo de água frio, sem me incomodar com a dor na garganta. O que quer que tenha acontecido aqui, não passou de um caso anormal.

Em mais de trinta anos, eu nunca precisei me preocupar com fantasmas me perseguindo, não seria agora o momento.


Dois dias depois, o caso de Leonard estava nos principais noticiários, junto com a condenação de Walter e da sua namorada, que foi cúmplice do crime — essa última parte foi uma descoberta de Rhodes. Eu vi Trent e Rhodes dando algumas entrevistas para a TV.

Claro que eu não fui convidado, porque Rhodes ainda estava puta, mas mencionaram meu nome nos jornais. Não que eu desse muita importância para a glória da coisa, eu só preferia estar falando com a imprensa do que assinando todos aqueles documentos.

No fim da noite, Trent se aproximou da sua mesa.

— Estamos indo ao Red Floor para comemorar o fim do caso.

— Eu não sei se Carey me quer lá.

— Ela ainda quer te matar, mas você ajudou nesse caso. Ela reconhece isso — Trent deu de ombros.

Red Floor era um bar decadente na rua da delegacia onde os detetives se reuniam depois de resolver algum caso complicado, principalmente se envolvia algum assassinato. Era sempre difícil lidar com essas coisas — ver um corpo, encarar um assassino de frente e ter o trabalho de fazer justiça. Nem sempre eles conseguiam. Na maioria das vezes, o problema não era eles e, sim, a porra do sistema inteiro que permitia que um delinquente fosse solto por uma quantia de dinheiro.

Por isso, eles se reuniam no bar para esquecer e comemorar o pouquinho de vitória que conseguiram trazer naquele dia.

Eu ainda permaneci na minha mesa assinando papéis. Vi a capitã deixar seu escritório. Ela acenou com a cabeça e saiu.

Carey não disse nada para ela..

De última hora, resolvi passar pelo bar. Pelo menos para pedir desculpas a Carey e agradecer por não ter dito nada à capitã. Eu já tinha uma cota de advertências por desobediência. Se recebesse mais uma, era possível que a capitã me mandasse para outra delegacia e, Deus, como eu odeio mudanças.

Quando me levantei, o escritório estava escuro, exceto por uma pequena parte onde ficava o pessoal do turno da noite. Olhei na direção da cozinha onde vi Leonard há dois dias. Ela estava vazia e escura.

Outro vulto se emaranhou pelas sombras dos móveis, mas não era Leonard. Parecia uma mulher com um vestido longo. Sem traços. Apenas escuridão e vazio.

Respirei fundo. Não era a primeira vez que via aquela mulher. Ela parecia estar sempre à espreita no canto do meu olho. Eu a vi quando estava saindo com uma garota na semana passada, quando estava correndo no parque, quando levei Bolt ao veterinário... Eu desconfiava que era a mesma garota que aparecia nos meus sonhos.

Isso já acontecia há uns meses.

Ela nunca tinha um rosto, apenas um vestido azul. Era como se a imagem dela estivesse submergida de alguma forma.

Eu não sabia se ela era um fantasma ou se eu apenas estava perdendo a cabeça de vez. Em teoria, fantasmas tinham dificuldade em deixar seu local de morte, mas Leonard me perseguiu até ali. As regras que eu conhecia estavam sendo quebradas. Não havia nada que dizia que um fantasma não podia invadir meus sonhos.

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