Na manhã seguinte, eu saía do banho com uma toalha na cintura quando vi alguém parado no meio da minha sala de estar.
— O truque do sal. Muito inteligente. Você me pegou de surpresa — Era a garota de vestido azul.
Eu soltei um grito que me envergonhou.
Bolt, meu border collie, começou a latir e perseguir o próprio rabo.
— Que porra é essa? Como diabos você conseguiu entrar aqui?
O apartamento tinha linhas de sal por dentro das paredes. Foi um trabalho complicado, mas eu precisava de um pouco de paz dos mortos e essa era a única forma de conseguir isso.
Ou era o que eu achava.
— Eu estou aqui há mais de trezentos anos, eu conheço os truques. Se você quisesse mesmo proteger sua casa, você deveria ter feito sigilos — ela disse e andou ao redor do apartamento como se estivesse em casa.
Com a luz do sol entrando pelas janelas, eu conseguia vê-la melhor. Muito melhor. Ela era jovem, poderia facilmente se passar por uma universitária. Tinha lindos cabelos dourados que desciam em ondas suaves pelos ombros. Um rosto fino e esculpido com um toque refinado. Havia algo de antigo no seu rosto como se realmente pertencesse a outro século.
As roupas ajudavam nisso. Ela usava um vestido longo e azul com detalhes em dourado, mas a saia estava suja e amassada. Parecia que ela tinha corrido com aquela roupa em um campo aberto depois da chuva. Era a roupa que usava quando morreu... Mas para onde ela estava correndo?
Era incrível... Ela não tinha a aparência que um fantasma deveria ter. Sua pele não parecia doentia, seu cabelo não parecia sem vida e seus olhos eram tão vivos quanto... os meus.
— Se você está aqui há trezentos anos, você nem deveria ter tanta consciência — Puxei minha toalha, porque ainda estava de frente para uma mulher.
A garota estudou minha televisão com atenção. Ela tentou tocar no aparelho, mas sua mão passou direto pela tela. Pelo menos, ela não podia infringir todas as regras.
— O que é você?
— Eu sou como você — ela se virou e disse com um forte sotaque inglês — Eu também possuía a visão.
— A visão? — repeti, semicerrando os olhos — Quanto mais você fala, menos você faz sentido.
— Deus, você é ainda menos despreparado do que eu imaginava — ela balançou a cabeça e me olhou com reprovação — A sua habilidade de me ver e ver outros fantasmas, isso é a Visão. Ela é um dom que nós não sabemos muito bem a origem, mas existe no total sete famílias divididas entre os continentes que possuem esse dom. Elas têm o dever de proteger o véu que separa o nosso lado do Outro Lado.
Isso parecia um monte de bobagem saída de uma série de televisão.
Mas eu nunca conheci um fantasma que reconhecesse meu dom, que fosse capaz de raciocinar tão bem como ela, ainda mais depois de trezentos anos.
— Você também enxergava eles quando estava viva? — perguntei e ela assentiu com tédio como se eu fosse um aluno estupido — Isso significa que quando eu morrer, eu também ficarei consciente como você e vagando pela terra...?
— Não necessariamente. Permanecer aqui foi mais uma escolha minha, mas sim, nós mantemos a consciência por mais tempo.
— Certo... Ok — Eu me sentei no sofá — E você disse que há sete famílias com esse dom?
— Sim, mas apenas um membro da família possui a visão. Quando este morre, ele é repassado para outro membro, normalmente um filho ou um irmão com menos de seis anos — ela explicou, cruzando os braços.

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O Guia dos Mortos
FantasíaUm fantasma de outro século e um detetive que não confia em ninguém estão prestes a entrar em uma missão arriscada e se envolver em uma relação impossível. Fantasmas existem. Russell T. Montague é capaz de ver fantasmas desde o acidente que matou t...