— Como vocês não se sentem claustrofóbicos nesse lugar?
— Porra! — Pisei com tudo no freio, quase batendo no carro que estava na minha frente na avenida.
Olhei para o lado e Jessamine se sentava no banco do passageiro. Seu vestido se espalhava pelo assento, mas eu sabia que se tentasse tocá-lo, minha mão passaria por ele e aquela sensação estranha percorreria meu corpo.
— Você precisa parar de aparecer assim nos lugares!
Respirei fundo e virei na próxima rua.
— Como você conseguiu viver por tanto tempo assim? — perguntei, irritado.
— Não foi difícil. Eu não tenho necessidades humanas como os vivos e eu só precisava de um motivo para me manter aqui — Jessamine explicou, dando de ombros. Seu sotaque era tão forte que, às vezes, eu não a entendia com tanta rapidez. Não era um sotaque inglês comum, era como as pessoas da sua época falavam.
— O que exatamente você fazia quando era viva...? Você sabe... Com o dom... — Eu a encarei. Jessamine me olhou de volta. Ela tinha olhos castanhos claros que pareciam atravessar sua alma, era inebriante. Eu não me surpreenderia se ela dissesse que as pessoas da sua época tinham medo dela.
— Nós somos chamados de Guias. Nossa função é mandar almas que se perdem na terra para o Outro Lado... Normalmente, essas almas são vítimas de assassinatos que não conseguem se desconectar dos seus assassinos ou pessoas com assuntos pendentes — ela explicou, enquanto passamos por uma avenida movimentada. Jessamine observava tudo com um olhar atento. Devia ser estranho para ela ver como o século 21 se parecia.
— Eu pensei que todas as almas permanecessem aqui por um tempo.
— Não. Você acha isso, porque só lida com almas vagantes no seu trabalho. Mas no Outro Lado, há muitos outros. Não sei exatamente porquê alguns vão e outros ficam lá. Não existe uma ordem — Jessamine observou — Quando eu morri, eu escolhi ficar e manter a organização no Outro Lado. Faz alguns anos que algo vem acontecendo. Algo maligno está se enraizando naquele lugar e irritando as almas que permanecem por lá... Você mesmo viu isso quando Leonard voltou.
— Certo. Eles nunca voltam.
— Não, quando um Guia os manda através do Véu, eles não podem voltar.
— Então, o que é essa "coisa"? — Franzi o cenho, desviando o olhar da rua para encará-la.
— Eu não sei. O Outro Lado é infinito. Eu passei quase 10 anos procurando pela fonte desse mal e simplesmente não consigo achá-la... Foi quando eu percebi que precisava de um Guia — Jessamine explicou — Eu saí de lá com uma leva de outros fantasmas, mas eu fui para meu lugar de morte, próximo a Londres. Demorei mais alguns anos para chegar aqui e, então, me materializar para você.
— Parece ter sido um esforço e tanto.
— Espero não ter sido em vão — ela complementou.
Entrei no estacionamento da delegacia e parei meu carro do lado do Evoque de Trent que ele ganhou dos pais ao se tornar detetive. Aparentemente, a família dele tinha muito dinheiro.
Eu ainda tinha dificuldades para entender porque Trent havia escolhido a força policial quando devia ter uma herança gorda no banco.
— Olhe, Jessamine, eu nunca pedi por isso, por esse "dom" — Fiz aspas com os dedos — Sinceramente, eu nem vejo como diabos isso pode ser chamado de dom, porque nunca vi nenhuma vantagem em ver pessoas mortas...
— Ninguém pede! Mas você e eu nascemos destinados... — ela começou a argumentar.
— Eu estou apenas tentando viver a porra da minha vida! — Eu me descontrolei e gritei. Jessamine não se assustou, mas seu maxilar enrijeceu. Só esperava que ela também não fosse como os outros fantasmas quando ficava brava — Eu já tenho problemas o suficiente para uma vida só. O Outro Lado pode se virar bem. Aliás, eles estão todos mortos, dificilmente vão se importar com isso — Tentei baixar meu tom de voz.
— Isso é ofensivo — Jessamine respondeu — Eu não acredito que anos de tradição foram jogados no lixo pela sua linha genealógica. Nós costumávamos ser grandes. Vocês simplesmente reverteram toda nossa evolução como Guias.
— Evolução? Você realmente quer que eu escute as palavras de uma pessoa que assistiu a escravidão?
— E trezentos anos depois, vocês ainda são um bando de idiotas intolerantes, então me diga como exatamente vocês evoluíram.
Eu não pude responder, porque ela tinha razão. Apenas abri a porta do carro e saí.
— Eu posso te ajudar também, te ensinar a como usar seu dom! — Jessamine surgiu ao meu lado.
Eu continuei andando.
— Não quero usar meu dom, Jessamine..
— Russell, você ajuda os mortos, esse é seu trabalho aqui. O caso não é tão diferente assim.
Ao ouvir isso, eu parei. Estava a menos de dez metros da entrada da delegacia, mas por sorte, Rachel, a recepcionista, não conseguia me ver. Imagine como seria ver eu sozinho no estacionamento discutindo com o ar.
— Eu ajudo os vivos. Eu pego assassinos para que não repitam o que fizeram uma vez. Não tenho nada a ver com o que acontece depois... E também não acho que eles se importam.
— Posso te ajudar a transferir o seu dom para outra pessoa, se é o seu desejo.
Isso reteve a minha atenção por um segundo. Não sabia que isso era possível, mas eu estava descobrindo muitas coisas no dia de hoje.
— Desculpe, Jessamine, ache outra pessoa — disse por fim.
— Falando sozinho, Montague? — Era Rhodes vindo do outro lado do estacionamento com um pote na mão. Ela vestia seu blazer azul escuro e estava com os cabelos pretos presos em um rabo de cavalo curto.
— Você acreditaria se eu te dissesse que estou sendo assombrado pelo fantasma de uma garota arrogante do século 18?
— Muito engraçado — Jessamine murmurou ao meu lado, mas Rhodes não podia ouvi-la ou vê-la.
— Não — ela falou — Minha mãe fez o macarrão especial dela com molho branco. Trouxe um pouco para você e Trent.
— Uau, Carey, você trouxe comida para mim. O que os outros irão pensar disso? — brinquei com um sorriso no rosto, enquanto tentava esquecer a presença irritante de Jessamine ao meu lado.
— Não vai parecer nada, porque tecnicamente eu ainda sou casada — Carey balançou a cabeça — Você vai entrar?
— Daqui a pouco — respondi. Carey franziu o cenho, mas não perguntou o motivo, apenas seguiu em frente com o pote de macarrão — Foi ótimo te conhecer, senhorita Bassford, mas acho que nossos caminhos se separam aqui.
— Você é um cuzão, sabia disso?
— Meu Deus, eles usavam essa linguagem na sua época?
— Eu estou me adaptando — ela respondeu — E aquela mulher está afim de você.
— O quê?! — exclamei, mas Jessamine desapareceu.
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O Guia dos Mortos
FantasiUm fantasma de outro século e um detetive que não confia em ninguém estão prestes a entrar em uma missão arriscada e se envolver em uma relação impossível. Fantasmas existem. Russell T. Montague é capaz de ver fantasmas desde o acidente que matou t...