O Garoto

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— É a coisa mais simples e genial que eu já vi — Jessamine dizia entre as mordidas do seu segundo cheese bacon duplo.

Eu pedi apenas um suco de uva para mim e um de limão para ela, porque não a julgava pronta para tomar sua primeira coca-cola ainda.

— Nós temos mais disso por aqui. Os Estados Unidos têm o maior índice de obesos por um motivo.

Jessie colocou o hamburger no prato e limpou a boca com o guardanapo. Ela olhou para o restaurante ao redor onde havia um pequeno fluxo de pessoas indo e vindo. Já havia passado do horário de almoço.

Assim que chegamos na lanchonete, Jessamine conseguiu manter uma conversa prolongada com a atendente e depois com o garçom que nos serviu. Estava quase me arrependendo de não ter simplesmente passado pelo drive thru, mas me lembrei que Jessamine havia perdido o contato social por muito tempo.

— Vá com calma, ok? Seu corpo não deve estar acostumado com esse tipo de comida.

— O que você entende de anatomia de pessoas ressuscitadas? — ela rebateu, colocando o hamburger no prato para tomar um gole do seu suco.

— E o que você sabe? — eu me encostei contra a cadeira.

Ao nosso lado, um cara de terno passou e seus olhos pararam em Jessamine por alguns segundos. Estranho perceber que as pessoas não estavam reparando no cara de trinta anos falando sozinho e, sim, na garota inglesa com traços antigos que me acompanhava.

— Vamos concordar que é um campo inexplorado para os Guias — Jessamine falou — Mas minha teoria é que esse corpo não é o mesmo de 1731. Fisicamente sim, é o mesmo, porém se você pensar que meu corpo verdadeiro foi queimado em algum momento, o que você trouxe foi o meu espectro e ele evoluiu nesses quase trezentos anos.

— Acho que não estou bêbado o suficiente para essa conversa.

Jessamine revirou os olhos.

— Deveríamos escrever sobre isso para os próximos Guias.

Não — eu ergui o corpo e coloquei os braços na mesa — Não quero que os outros Guias saibam do que são capazes.

— Nenhum Guia começará a trazer pessoas dos mortos, Montague. Primeiro porque não existe ninguém como eu no Outro Lado.

Olhei para o círculo úmido que o copo de suco formou na mesa.

— Você acha que só deu certo porque você é você? — Ergui a cabeça para encarar seus olhos castanhos que pareciam mais claros com a luz do sol que entrava pelas janelas.

— Sim — respondeu — Não comece com isso. Seria impossível.

Franzi o cenho.

Ela colocou os braços na mesa e me encarou como uma das cuidadoras do orfanato costumava me olhar, não com pena ou raiva, apenas resignação.

— Sua mãe — disse suavemente.

— Não estava pensando nela.

— O garoto, então? — ela perguntou — Eu vi o porta retrato com os dois garotos e a mulher de cabelos escuros. Você é o garotinho de cabelo cacheado, então o maior que parece ter alguma descendência asiática, é seu amigo...?

Passei o dedo pela mancha escura na mesa. Como Jessie conseguia entrar na minha cabeça desse jeito? Ninguém sabia tantos detalhes da minha vida como ela sabia nesse momento, nem mesmo as pessoas do orfanato.

No começo, eu contei as coisas para ela, porque ela estava morta e não podia ir a lugar algum, mas, agora, eu dei poder a ela. Ela podia fazer o que quisesse com as informações que eu estava lhe dando e, ainda sim, eu queria contar para ela.

— Minha mãe tinha algumas pessoas na vida dela além da bebida e das drogas — respondi — O pai dele foi o primeiro cara, antes do meu próprio pai, e foi o que ficou por mais tempo. Ele pagava pensão, às vezes aparecia para visitar ele e a mãe. Mas um dia ele encontrou outra pessoa e cortou todas as relações. Para se vingar, ela resolveu pegar o carro e viajar para a Califórnia comigo e meu irmão em meio a uma tempestade — engoli em seco antes de continuar a história — Ela jogou o carro em um desfiladeiro.

— Mas você sobreviveu — Jessamine completou— O que houve com ele?

— O médico que me atendeu disse que eu só sobrevivi porque ele me protegeu com seu próprio corpo.

— E você se culpa por isso.

Encarei Jessie.

— Você não é minha psicóloga, pode parar com isso.

— Estou tentando entender.

— Entender o quê?

— Você — ela pegou o lanche — Você é a pessoa mais complicada que já conheci.

— O mesmo poderia ser dito de você.

— Uma última pergunta e prometo não tocar nesse assunto.

Suspirei. Não queria falar disso. Nunca falei sobre isso nem com a psicóloga do orfanato, imagine só com uma garota do século retrasado.

— Quantos anos você tinha?

— Foi dois meses antes do meu aniversário de sete anos. Por quê?

Jessamine terminou seu hambúrguer e balançou a cabeça.

— Curiosidade — disse, mas não acreditei nela — Acho que deveríamos ir agora.

Eu a analisei por alguns segundos, então chamei o garçom para pedir a conta.

— Isso é tudo?

— Na verdade, eu queria mais daquela batata... — Jessie abriu um pequeno sorriso para ele.

— Apenas embale a maior porção que vocês tiverem — falei e ele riu.

— Sabe, minha namorada adora comer quando saímos juntos, mas acho que a sua acabou de ganhar dela — O garçom disse antes de sair para pegar as batatas-fritas de Jessie.

— Russ? — ela me chamou quando saímos do restaurante.

— O que é agora? — Suspirei.

Jessamine parou na minha frente e pegou na minha mão. Sua pele estava quente e eu senti aquele arrepio subir pelo meu braço de novo.

— Obrigada por me dar essa chance — ela disse — Eu prometo ir embora assim que tudo estiver feito.

Eu quase havia me esquecido que, em algum momento, Jessamine iria embora. Claro, isso não era natural. Ela não pertencia a esse lugar, ainda que, de alguma forma, ela parecia pertencer mais do que eu.

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