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"Diz que não consegue olhar pra mim ainda... não me trata mal."
- Jão.

(Pedro Tófani)

01 de julho de 2024
Paris, França

– Eu só não entendo uma coisa. — Gustavo diz ao meu lado. – Se você tinha certeza do que viu, por que você não denunciou no Mundial de 2021? — ele questiona, eu respiro fundo.

Estávamos em Saint-Ouen, a base do comitê olímpico do Brasil na França, esperando a comissão se organizar para iniciar o resultado das investigações.

Inicialmente, eu havia estranhado a necessidade de tornar o anúncio da decisão presencial, já que normalmente, o comitê apenas emitia alguma nota com a decisão para agilizar o seguimento das olimpíadas. As competições de tiro com arco eram naturalmente mais curtas do que as outras modalidades.

– Eu era muito novo. — digo tentando me manter inabalado. – O comitê estava preocupado com os nomes grandes naquela época. Um garoto de 20 anos não era relevante.

– Claro que era. Eles não ligariam para sua idade, mas sim para a denúncia. O rumo da Copa Mundial estava em jogo. — insiste.

– Não importa, Gustavo, já passou. — tento finalizar o assunto, sem sucesso.

– E nas olimpíadas de Tóquio? — volta a questionar. Eu lhe encaro com tédio. – É sério. Fiquei muito indignado por não ficar sabendo que a gente foi desclassificado do mundial literalmente por uma fraude.

– Esquece isso, não dá pra mudar o passado. — consigo colocar um ponto final no diálogo.

Com a chegada de Renan, representante do comitê brasileiro de tiro com arco, e de mais alguns outros importantes decisores do caso, o anúncio se iniciou.

– Ainda bem que é o Renan. — Gustavo diz baixo ao meu lado e eu estranho sua constatação.

– Boa tarde. — o presidente do comitê da França começou. – Iremos ser breves. A princípio, não havia a necessidade de presencialisar o anúncio da decisão do comitê, já que a decisão estava entre remover o juíz da arbitragem ou desclassificar o competidor em questão. — o senhor continua, evidenciando um claro cansaço em seu rosto. – Entretanto, após diversas discussões com o representante do brasileiro, decidimos que ambos permaneceram nas olimpíadas.

Uma onda de burburinhos preencheu o ambiente. Eu encarava Gustavo, tão confuso quanto eu. O clima era naturalmente pesado.

– Não há evidências suficientes e claras de que Pedro Tófani foi prejudicado nas olimpíadas de Tóquio por causa de atitudes de João Vitor. — Renan começa.

– Como não? — Gustavo exclama baixo e indignado ao meu lado.

– Entretanto, não dá para ignorar a manifestação do competidor. — o brasileiro volta a dizer. – Portanto, para não atrasar a competição, foi decidido que João Vitor permanecerá na arbitragem, mas não irá participar das decisões principais dos árbitros. — o representante diz disfarçando um sorriso claro. – Além de não participar das classificatórias e nem das finais.

Levo meus olhos para João Vitor do outro lado do auditório, aparentemente inexpressivo, mas consegui perceber suas mãos nervosas apertando suas próprias coxas e seu maxilar travado procurandi controle.

– Enquanto Pedro Tófani irá começar a competição com 20 pontos a menos do que os outros atletas, após João Vitor acusar a atitude do competidor como difamatória e prejudicial à sua carreira. — o presidente começa sinto meu corpo ferver em ódio.

– São só 20 pontos, você recupera. — Gustavo me tranquiliza, mas eu o ignoro, fuzilando meu olhar ao juíz com todo o rancor presente em mim. Ele não devolve, parecendo lidar com sua própria luta interna e ignorando a situação ao seu redor.

– Alguma dúvida ou protesto contra a decisão? — Renan pergunta, visivelmente satisfeito com a situação, enquanto o presidente do comitê aparenta cansado ao seu lado.

João não protesta e só então percebo que o garoto veio sozinho. Os outros juízesbe arqueiros foram solicitados a aparecer para estarem cientes da notícia, mas nenhum parecia estar com ele, ao lado dele.

– Você quer contestar? — Gustavo pergunta ao meu lado e desperto do meu devaneio.

– Hum? Não. Aparentemente me manter na competição não foi uma tarefa fácil para Renan. — digo apontando para o representante. – Não quero abusar da bondade dele.

– Bom, como não houveram manifestações, declaro decisão tomada e caso encerrado. — o presidente diz. – A nova programação da modalidade de tiro com arco será enviada para vocês até o fim do dia. Bons jogos. — finaliza.

Alguns competidores e juízes começam a se levantar para ir embora. João permanece sentado do outro lado do auditório e observo o mar de gente passando por ele sem sequer lhe cumprimentar.

– Vamos embora? — Gustavo me desperta novamente e me viro para observar seu olhar confuso sobre mim.

– Pode ir indo, eu te encontro lá fora. — digo e meu técnico se levanta.

Permaneço sentando observando João, confuso sobre o que exatamente ele estava esperando até o auditório ficar vazio e o silêncio tomar conta do ambiente.

– Não vai embora? — o loiro diz um pouco mais alto para que eu escute de onde estou, sua voz ecoa por todo ambiente.

– Pergunto o mesmo para você. — rebato e observo seu peito subir e descer em um suspiro.

– Espero que você esteja feliz. — o homem diz, levando seus olhos até mim. – Com a decisão.

– Não poderia ter sido melhor. — digo afiado, mas observo suas sobrancelhas franzir em dor.

– Isso é tudo que eu tenho. — ele começa melancólico e franzo o cenho, incomodado por transparecer sua fragilidade. – A arbitragem foi a única maneira que sobrou de estar perto daquilo que eu amo. Você ainda atira. Eu perdi essa oportunidade e você se vê na necessidade de tirar até o que me restou.

– Tiro com arco também é tudo que eu tenho. — digo me levantando para me retirar do auditório. – E você também me tirou oportunidades. Só coloque na sua cabeça que não é porque você não atira mais, que eu preciso ser constantemente prejudicado por fazer o que você gostaria de estar fazendo.

Sigo andando e espero alguma resposta do cacheado, que não vem. Me viro para ele na porta do estabelecimento e observo seu corpo sozinho entre as cadeiras, virado de costas para mim.

– Se a arbitragem é tudo que você tem, então tenta não estragar até o que te restou. — finalizo antes de me retirar, sem esperar sua resposta.

Do lado de fora, encontro com Gustavo já me esperando com motorista para voltarmos ao hotel.

– Tudo bem? — o homem me pergunta preocupado.

Não respondo sua pergunta, observando seu olhos ponderativo antes de entrar no carro sem lhe dar mais explicações.

Na Mira | PejãoOnde histórias criam vida. Descubra agora