— Capítulo Doze: De Volta
Ao abrir as portas duplas, dei de cara com um pátio extenso com piso de concreto, algo semelhante a um estacionamento. O local estava mergulhado em uma luz amarelada e fraca que emanava de um poste solitário, posicionado sobre um carro no canto do pátio. O único veículo estacionado naquele lugar deserto.
Uma sensação de inquietação cresceu dentro de mim, como se eu tivesse entrado em um mundo paralelo e misterioso. A cena era estranha e desoladora. O contraste entre a iluminação escassa e a vastidão do pátio criava uma atmosfera opressiva.. Cada passo que eu dava ressoava no silêncio do lugar, como se o próprio ambiente estivesse me observando com uma curiosidade sombria. Cautelosamente, avancei para dentro do pátio, observando atentamente o carro solitário sob a luz trêmula do poste. Não reconhecia o veículo, o que aumentava minha sensação de estranheza. O que ele estava fazendo ali?
Uma presença familiar se aproximou por trás de mim, mas antes que pudesse me virar para ver quem era, mãos firmes pousaram em meu braços, fazendo-me estremecer.
— Ulysses... — a voz de Ramon sussurrou em meu ouvido, carregando um misto de alívio e urgência. — Mortos não voltam à vida, apenas revivem suas vidas até o dia de sua morte.
Apertei a mandíbula, vendo a chama fraca da esperança se dissipar de uma vez. Andei alguns passos à frente, só para me virar e olhar Ramon, meu guia que desde o início alimentou a eloquente ideia de redenção e salvação. Mas, assim que olhei seu rosto descoberto, dei passos para trás, perplexo e assustado. Ramon estava diante de mim, mas sua aparência era surpreendentemente comum. Era como olhar para um espelho distorcido que refletia minha própria imagem. Não havia nada de demoníaco ou sinistro em sua expressão. Ele parecia um homem normal, de aparência normal, vestindo roupas normais. Era um espelho de mim mesmo, como se eu estivesse encarando meu próprio reflexo. Desorientação e paranoia se apoderaram de mim, deixando-me incapaz de compreender o que estava acontecendo.
— Quem é você? — minha voz saiu trêmula, e minhas palavras ecoaram pelo pátio vazio. Seu sorriso apareceu, assim como as familiares covinhas no canto esquerdo de seu rosto, me aterrorizando ainda mais. — O que é você?! — exclamei, minha voz sendo o único som naquele lugar vazio.
— Ulysses... — ele começou, sua voz soando exatamente como a voz que eu ouvia soar de mim mesmo, me deixando perplexo pela estupidez de nunca ter percebido antes. — Sou o que você deseja e teme ao mesmo tempo, aquele monstro terrível que acabou com sua vida. O pesadelo mais constante nos seus sonhos, o demônio cruel que feriu todas aquelas pessoas inocentes e destruiu tudo aquilo que você tanto quis. — Sua voz parecia carregar todas as mágoas que pendiam dentro de si, a dor velada entrelinhas de uma vida inteira. Ouvir a voz que ecoava como a minha própria voz, dizendo palavras tão cruéis e carregadas de acusações, era quase insuportável. — Eu sou a manifestação de seus próprios demônios, seus medos mais profundos e suas culpas mais sombrias. — Ramon continuava a se assemelhar a mim de maneira perturbadora, mas agora eu via um fardo de dor e culpa em seus olhos, uma carga emocional que eu não esperava encontrar. — Eu sou você.
— Isso não é real... — murmurei, mesmo que meus olhos vissem a sua presença à minha frente. A confusão ainda turvava minha mente, e o peso esmagador da culpa e do remorso me envolveram. As palavras de Ramon eram como punhais afiados, perfurando meu coração já dilacerado. Seus passos vinham lentamente em minha direção, e eu não tinha o que fazer a não ser permanecer estático esperando. Ele chegou tão perto de mim que consegui sentir seu hálito quente — e real — em meu rosto, aqueles olhos de estrelas passando minha vida inteira como um filme bizarro.
— Você não é o herói, Ulysses — disse ele, com um sussurro. — Sua maldade não se difere das criaturas desse lugar. — Minhas mãos tremiam, e eu não sabia mais o que pensar. A culpa era como uma corrente pesada em volta do meu pescoço, me arrastando para o abismo. Eu não podia negar as verdades perturbadoras que Ramon estava me mostrando, mas também não podia aceitar a ideia de ser irreversivelmente um monstro condenado. — Queria tanto saber o que te fez parar aqui? Você acha que todas aquelas coisas que o Aqueronte te mostrou são ilusões? Acha que era uma pessoa boa, merecedora de misericórdia? — suas palavras continuavam a me atingir como gládios acerados, perfurando minha alma já ferida. O conflito interno que ele provocava era quase insuportável, e eu estava preso em uma espiral de autoquestionamento e culpa.
— Eu... eu... não... — tentei falar algo, mas minhas palavras pareciam ter se dissipado, deixando-me incapaz de formular uma resposta coerente. Ramon moveu a mão por trás de si e, em um gesto que tanto familiar quanto misterioso, trouxe à frente uma de minhas mãos, entregando-me algo. Baixei o olhar, curioso e, ao mesmo tempo, temeroso do que poderia encontrar. Minha respiração ficou presa em minha garganta quando percebi que ele havia me entregado uma arma de fogo. Era uma peça de metal frio e mortal, seu peso pressionando minha mão de maneira inquietante. Olhei para aquela pistola com uma sensação de perplexidade e horror, pois sabia que, de alguma forma, ela estava ligada à mim, à tragédia que me havia me trazido para cá. Os detalhes da arma eram vívidos e perturbadores, cada ranhura e cada marca pareciam contar uma história que eu estava desesperado para entender, mas que também me aterrorizava.
— Acha que as balas te darão paz e redenção? — Ramon questionou com um tom retórico, sua voz ecoando pelo lugar. Enquanto eu segurava a arma em minhas mãos, suas palavras ecoavam em minha mente como um eco doloroso. Eu estava começando a entender que as balas que eu buscava não eram apenas objetos físicos, mas representavam um peso emocional e espiritual muito maior. Ramon, com a habilidade de um ilusionista, retirou um objeto pequeno e metálico de seu bolso da frente, segurando-o à minha frente. Meus olhos seguiram o movimento dele, e meu coração apertou quando percebi o que ele estava segurando. Era uma das balas, a última delas. Aquela bala, um símbolo de minha busca incansável, agora estava nas mãos de alguém que eu não conseguia compreender completamente, alguém que era um reflexo sombrio de mim mesmo. — Olhe você mesmo. — Ele apontou com o queixo para trás de mim, obedeci automaticamente, virando-me para olhar o porta-malas do carro solitário que estava aberto. Ali, caixas e objetos estavam espalhados, e pude ouvir um barulho vindo dos bancos da frente, como se alguém estivesse se preparando para deixar aquele lugar.
Enquanto olhava para o porta-malas do carro solitário, uma sensação estranha começou a tomar conta de mim. Algo estava se desenrolando diante dos meus olhos, uma cena que eu não esperava presenciar. Ali, vi a imagem de mim mesmo, vestido de forma idêntica à que eu estava naquele momento, voltando para o porta-malas do carro. Segurando caixas semelhantes às que estavam espalhadas ao redor, pude ver claramente como ele as guardava meticulosamente no interior do carro. Cada movimento que fazia parecia ser um espelho de minhas ações atuais, como se estivesse revivendo um momento do passado. Eu estava preenchendo o espaço vazio no porta-malas, a sensação de déjà vu era avassaladora. Continuei assistindo a cena, incapaz de desviar os olhos, mesmo que não pudesse entender completamente o que estava acontecendo. Mas, então, enquanto observava essa cena perturbadora se desenrolando diante de mim, aqueles olhos, meus olhos, voltaram-se na minha direção. Meu coração acelerou, e meu corpo gelou com a intensidade do encontro. Era como se eu estivesse me olhando nos olhos, mas havia algo na expressão do meu eu do passado que era perturbadoramente estranha.
Meus olhos refletiam uma mistura de determinação e desespero, como se estivessem carregados de segredos sombrios e conhecimento proibido. Eu estava preso em um momento que parecia transcender o tempo e o espaço, uma experiência surreal que não conseguia compreender completamente. A conexão entre meu eu do presente e o meu eu do passado era tão forte que parecia que tudo que eu vivi estava se fundindo em um único ponto. Olhei para a arma em minhas mãos e respirei fundo.
— Lennox!
![](https://img.wattpad.com/cover/382974807-288-k899995.jpg)
VOCÊ ESTÁ LENDO
Ulysses e o Caos Divino
SpiritüelApós uma vida marcada por escolhas erradas e relações caóticas, Ulysses se vê em uma jornada pelo Inferno, onde cada passo revela uma nova camada de seus próprios pecados e arrependimentos. Entre almas condenadas, ele encontra uma figura misteriosa...